Enquanto há tinta há esperança?

O primeiro romance de Paulo Ferreira é um contra-relógio. Uma morte anunciada, uma vida que passou a correr

Quando descobre que tem cancro e que apenas lhe restam seis meses de vida, Pedro resolve juntar num jantar as quatro mulheres mais importantes da sua vida: Mia, Carmen, Alice e Rita.

O arranque de "Onde a Vida se Perde" deixa-nos curiosos. O ambiente do consultório é verosímil, a descrição do pânico controlado bem explicada, o frio de Agosto que gela os ossos de Pedro é eficaz, a urgência de um primeiro telefonema para casa é credível. Em suma, um bom prólogo "stacatto" que não nos prepara para os 22 capítulos que se seguem: uma meada de lã difícil de desembaraçar.

Começa por nos baralhar nas primeiras linhas do primeiro capítulo, em que as acções de Pedro e Mia se sobrepõem sem que percebamos quem fala connosco, até ao enxerto dos primeiros diálogos. Logo a seguir, eis que a mobília se antropomorfiza: "A casa ouviu a frase que Pedro tinha guardado para depois de jantar, mas os móveis, os electrodomésticos e as portas dos armários (coisas que participam na vida de um casal) não perceberam o significado."

Entra em cena a história de amor com Rita, uma das convocadas para a cena, em tempos aluna de Pedro. Por um comentário de Mia sobre Pedro: "Incorrigível. Sempre atrás de uma saia e, por detrás daquela placidez que o caracteriza, escondia-se um saltimbanco sentimental." Suspeitamos que talvez as coisas se componham num registo assumidamente banal, igual em romantismo ao dos mais populares romancistas portuguesas. Mas estamos enganados, porque o autor tem agora de despejar o capítulo que tão briosamente preparou sobre o nojo que Pedro tem desde adolescente do seu esperma. Um conto, entalado à pressa no meio da narrativa. Inconsequente, a partir do momento em que percebemos que, seco este sémen, não existirá o mínimo vestígio dessa obsessão no resto do livro, que entretanto já avançou na descrição sumária das relações de Pedro com Carmen e Alice. Vão-se somando as descrições banais sem que nenhuma destas mulheres se distinga na nossa memória. É tanta a noção de que tudo está baralhado que o autor chega a convocar o narrador para falar ao ouvido do leitor: "Apesar de pouco ou nada se ter falado de Alice até aqui, já a meio da história, a verdade é que ela teve uma importância bem maior que este silêncio." Uma justificação que irrita pelo desplante de tomar o leitor por parvo.

Entretanto começaram já a pingar, a rematar alguns capítulos, as citações tiradas de uma enciclopédia da música rock e pop das últimas décadas, daquelas que todos fomos compilando desde que aprendemos a viver com as borbulhas e a dor de cotovelo: "Andamos à procura de seres extraordinários que queiram deixar de ser astronautas para viverem ao nosso lado. The National, 'Looking for Astronauts'. Uma artimanha preguiçosa. Para fazer uma boa camisola de tricô é preciso aprender primeiro a fazer os remates.

Enquanto há tinta há esperança, podem pensar os mais optimistas: talvez o jantar anunciado com pompa e circunstância se revele um momento de forte intensidade dramática e redima Paulo Ferreira. Nem isso! O repasto começa a ser servido em fascículos intercalados entre capítulos a partir do meio do livro, numa cacofonia de vozes de pouca utilidade.

Escreve Paulo Ferreira: "Quando deixamos uma porta entreaberta, mais cedo ou mais tarde há uma primeira corrente de ar, a porta move-se, acaba por fazer estrondo." Em "Onde a Vida se Perde", a corrente de ar nem sequer nos constipou. Impressiona- nos que subsistam editoras que se dão ao luxo de se demitir da sua função mais nobre, deixando chegar às livrarias esboços mal-amanhados de romance como este.

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