Shakespeare para os dias de hoje

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Coriolano replica as escadas da Assembleia da República no Teatro Nacional D. Maria II VICTOR HUGO PONTES

Quatrocentos e 50 anos depois, Shakespeare é o homem que escreveu sobre o Portugal da crise e dos 40 anos do 25 de Abril? Como Queiram, encenação de Beatriz Batarda, e Coriolano, de Nuno Cardoso, abrem um 2014 shakesperiano: seis estreias, duas reposições

Da plateia a voz de Beatriz Batarda pede aos actores que dêem corpo à frase. Não é uma frase qualquer. É, muito provavelmente, a mais famosa frase escrita por William Shakespeare, logo a seguir à mais citada “ser ou não ser, eis a questão”: “Todo o mundo é um palco. E os homens e as mulheres só actores.” A encenadora alcança a largas passadas o palco do teatro São Luiz para fazer um pedido a Bruno Nogueira: “O corpo tem de acompanhar o que estás a dizer.” E o actor experimenta outra vez até o ensaio poder seguir. Como Queiram (em cena a partir da próxima terça-feira, dia 14, e até 26 Janeiro) é a primeira incursão de Batarda, enquanto encenadora, no universo do dramaturgo britânico. Ser uma das duas peças que abrem o ano Shakespeare em Portugal, marcando o 450.º aniversário do seu nascimento, é uma coincidência. A escolha, acalentada há três anos, obedece a outro princípio: a procura de um “teatro inteligente”. “Gosto de actores implicados, principalmente, intelectualmente. Isso faz com que o espectáculo fique mais inteligente, porque é vivo, é real, e não um exercício de demonstração do meu poder ou da minha capacidade artística. Gosto de um teatro do pormenor, que nasça do encontro com o outro — do actor com o espectador, do actor com o outro actor, ou da personagem de um actor com a personagem de outro actor.” O poder, esse, “está na palavra”.

Do outro lado “da praça”, digamos assim, Nuno Cardoso ensaia Coriolano, também de Shakespeare, também em estreia (desde ontem até 2 de Fevereiro, no Teatro Nacional D. Maria II), a sua terceira aventura (depois de Ricardo II e Medida por Medida) num teatro que o encenador vive como “uma experiência do colectivo”, e que vê como “um potenciador de discurso que resista à crise e que rejeite a falta de condições” (as duas peças passarão de resto o primeiro trimestre a cruzar-se: Porto: Coriolano, 6 a 16 de Fevereiro; Como Queiram, de 14 a 23 Fevereiro; Guimarães: Coriolano, 22 de Fevereiro; Como Queiram, 1 de Março; Viseu: Como Queiram, 7 de Fevereiro; Coriolano, 28 de Fevereiro a 1 de Março). Num repente, como se não importasse quem dirige e quem interpreta, Nuno Cardoso levanta-se da cadeira e salta para o palco, desaparecendo nos bastidores. Regressa segundos depois carregando uma mesa — que na manhã seguinte terá desaparecido da encenação — e, assim, misturando-se com o bando de pássaros negros que são os actores de uma peça sobre o colectivo. “Somos um grupo, estamos a tratar ‘disto’, mas o que interessa é o discurso, é a situação política onde nos colocamos e como chamamos a atenção para o que se está a passar.”

Um e outro, Cardoso e Batarda, agentes políticos ao serviço de um texto. Um e outro, Cardoso e Batarda, a olhar para Shakespeare e a ler os dias de hoje. Cardoso através de um texto que pede atenção “ao momento em que nos transformamos naquilo que criticamos”. Batarda servindo-se de um texto que pergunta qual a importância de uma comunidade como aquela que se constitui entre actores e espectadores todas as noites: “A frase ‘Todo o mundo é um palco’ é essa hipótese de se poder constituir uma comunidade que, ainda que efémera, nos permita pensar, questionar e até criar prioridades.”

Para um e para outro, afinal, 450 anos depois, Shakespeare, o autor que os tempos modernos precisam de ouvir. Coriolano e Como Queiram são apenas duas das, para já, seis estreias previstas para este ano a partir de textos de Shakespeare. Em Março, a Mala Voadora atira-se a Hamlet (São Luiz, 27 a 30 Março), espectáculo que Jorge Andrade constrói porque lhe interessa perceber “como pode ser a acção mais do que um prolongamento do verbo”, numa peça em que a personagem que lhe dá nome, estando na posse privilegiada de informações, “se vai enredando num jogo de questões, como se não quisesse assumir as suas responsabilidades”. Em Maio, Alvaro Garcia de Zuñiga arrisca-se à peça escocesa, a maldita, de nome tão impronunciável que surge riscado nos cartazes: Macbeth (Centro Cultural de Belém, 15 a 19 Maio), e faz dos actores do Ensemble “as personagens deste pesadelo [que] vão mergulhar no sangue”. Depois, os Lisbon Players prosseguem o trabalho continuado com Noite de Reis (CCB, 31 de Outubro a 2 de Novembro), e Tiago Rodrigues, num gesto surpreendente no seu percurso de justaposições e découpages dramatúrgicas, vai em busca “da intimidade e do que é pessoal no teatro” para, juntamente com os coreógrafos e bailarinos Sofia Dias e Vítor Roriz, encenar “a história de um amor absoluto mas oportunista e estratégico de ambas as partes” que é António e Cleópatra (CCB, 4 a 8 de Dezembro). A este programa, como se não bastasse, juntam-se duas produções de 2013: Lear, de Marcos Barbosa, para o Teatro Oficina (24 a 26 Janeiro, Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada), texto sobre “a legitimidade do poder” e a desreponsabilização colectiva, experimentado primeiro no Japão, na devastada prefeitura de Fukushima, e depois em Guimarães, na sua ressaca enquanto Capital Europeia da Cultura (e então vida, política e cultura voltam a lembrar que são, afinal e sempre, uma e a mesma coisa). Actor Imperfeito, que Luísa Costa Gomes escreveu a partir dos sonetos de Shakesperare para encenação de António Pires, apresenta-se no Teatro Carlos Alberto, no Porto (22 Janeiro a 2 Fevereiro), mostrando “as cabeças que falam recortadas pela luz” como esqueletos de seres que deveriam apenas aspirar à beleza.

Culpa e responsabilidade

Porque se encena então Shakespeare, e porque é que as efémerides são acontecimentos marginais para autores desta c(r)aveira? Diz Batarda que hoje, “quando são os gráficos que condicionam a vida das pessoas e não o contrário”, quando à crise de valores que atravessamos, decorrente ou prescriptora de uma crise financeira, se responde com “a ausência de elites intelectuais”, num tempo em que “está tudo invertido”, incluindo o poder da palavra, “do sim e do não”, reencontramos em Shakespeare “valores humanistas e as respostas sobre quem é que somos, quais são as nossas prioridades”. E o texto, através da presença implicada dos actores, a perguntar, se não é nossa a culpa. E os encenadores a devolverem a pergunta, formulando-a de forma responsável: não é nossa a responsabilidade?

Diz Nuno Cardoso: “Temos um discurso de que não nos devolvem o poder, somos a geração que está à espera, mas será que devemos realmente tê-lo? Será que não é já demasiado tarde? Não deveríamos abrir caminho para a geração seguinte, porque já foi tarde para nós? A ilusão já lá não está. Só o cinismo. A amargura já te tolda as decisões, já não consegues sonhar.” Perguntas, perguntas, perguntas. Jorge Andrade: “É o verbo, ou a acção implícita no verbo, que faz o texto?” Lembra Alvaro Garcia de Zuñiga, citando Macbeth: “Why should I play the Roman fool, and die on mine own sword?”

Quarenta anos passados sobre o 25 de Abril de 1974, não foi certamente sobre a revolução dos cravos que escreveu Shakespeare, mas é de Abril, da “revolução verde”, que vamos falar. Na cenografia de Como Queiram, o vermelho do vestido de Rosalinda é vermelho de sangue, mas na tela branca que constrói o cenário no palco aberto, sem fronteiras entre público, actores e personagens, as pinceladas de cor evocam os cravos. É um texto “sobre a delicadeza, a aceitação, a redenção, escrito a partir do confronto, colocando o espectador a assistir à intolerância, à impaciência, aos desejos de manipulação, à oposição de forças que nos levam a sermos menos nobres até para conseguirmos o que queremos, demitidos que estamos das nossas responsabilidades”. É um texto sobre a comunidade, “sobre a passagem de testemunho, a memória e o contributo individual”.

Do mesmo modo, Coriolano, na porosidade do discurso que opõe o general romano ao povo que o elegeu e aos correlegionários que o apoiaram, pergunta, das escadarias da Assembleia da República que Fernando Ribeiro recriou, se “a celebração da gestão, a moralização puritana das coisas, as restrições e a evolução subtil disfarçada de ética” são o que deixamos que nos aconteça.

Pergunta Marcos Barbosa: “Para que serve andar a fazer teatro? Estamos a trabalhar para quem?” Pergunta Beatriz Batarda: “O que é a identidade?” Pergunta Tiago Rodrigues: “Como é que nos colocamos no lugar do outro?” Responde Jorge Andrade, citando uma filósofa ouvida há dias na televisão: “A utopia está dez passos à nossa frente. Dás dez passos e ela está sempre dez passos à frente. Mas o que interessa é que vás andando na sua direcção sem baixar os braços.” É por isso que Marcos Barbosa, na leitura política que faz de uma peça sobre um rei que todos viam como louco por querer desapossar-se do poder, diz que cada encenação de um texto de Shakespeare “é um acto de afirmação revolucionário”. Também Lear, na sua forma de exercer o poder, nos pergunta “o que esperamos nós das coisas”.

No quotidiano

Olhe-se então para este autor que escreveu sobre tempos que não vivemos e respondamos aos nossos. Abandone-se o cânone, abrace-se a palavra como capital político e de acção e, como diz Tim Etchells, o outro britânico oficialmente artista na cidade de Lisboa em 2014, observe-se “um imaginário que trata o espectador como alguém que é convidado a nele entrar”. A Etchells nunca interessou fazer Shakespeare e, no entanto, em Be Stone no More (2012), uma encomenda da Royal Shakespeare Company, pôs actores, encenadores e adolescentes a questionarem o que ficava de facto dos seus textos, “para lá da englishness, do blá, blá, blá”

Para Tim Etchells — e isto só funciona se o pusermos naquele inglês de humor deadpan —, Shakespeare “is a ridiculous Englishness that sits there”. Isto não tem nada de pejorativo, pelo contrário. Alerta apenas para o que realmente interessa: a linguagem. “A fleuma, essa grandeza e essa pompa tão cara à identidade britânica que celebra o teatro e a História, não está atenta ao modo como a presença de Shakespeare é visível, de forma muito concreta, no quotidiano.” Nas frases, nas interjeições, nos diálogos que resgatam do “culto a um processo morto” o “extraordinário potencial que reconsidera, dá de novo a ouvir, ou inventa alguma coisa a partir de objectos que pertenceram a uma outra cultura”.

Luísa Costa Gomes escrevia precisamente isso no texto de introdução a Actor Imperfeito: à tradução “acrescem as dificuldades próprias de uma certa cultura da private joke, de uma língua de amigos, cujos jogos palacianos e menos palacianos nos escapam também”. Os textos vivem, assim, num questionamento permanente, como se a palavra fosse em si mesma um gesto público e, por isso, um gesto político. Tiago Rodrigues fala de um autor que nos deixou textos “que vivem em permanente conflito público, nos planos moral e político”, textos que existem “em conflito com a moral e a sociedade”. Textos, afinal, “com vida própria”, como diz Beatriz Batarda, habitados pela “tendência de negociar e dar ao espectador a possibilidade de ver o que lá não está”.

Como lembra Zuñiga, Shakespeare não viu o mar, nem a guerra, e não conhecia bem a geografia, a História ou a filosofia; mas pressente e traduz melhor do que ninguém o “grande mecanismo da História, da luta pelo poder e das paixões individuais que estão por trás do comportamento humano”.

Assim, no ano da graça de 2014: “Não podemos ficar a repetir aquilo que já sabemos”, diz Marcos Barbosa. “Ainda não acabou”, diz Nuno Cardoso. “É sempre uma escolha do espectador”, relembra Batarda. E isso somos todos.

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