Palavra e Mural

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Rui Gaudêncio

É graças à palavra e ao seu poder de construção e de desconstrução que hoje, mesmo voltando a viver tempos de afastamento do mundo, iluminamos parte dos dias

Nos tempos imediatamente a seguir ao 25 de Abril houve a experiência da convulsão da palavra e da premência do debate. Era imperativo debater-se tudo: da materialidade do quotidiano e da vida doméstica à ocupação de casas, aos programas universitários, à orientação programática dos partidos. A revolução cultural sedimentar-se-ia nas décadas seguintes e foi inquestionavelmente grande.

Começou-se de forma caótica e por vezes com excesso de protocolos. Quem não recorda como os pontos de ordem à mesa eram uma habilidade para adiar decisões ou gerar confusão, ou como se argumentava tanto com base nas experiências pessoais como com base em textos revolucionários, largamente citados? A palavra, o seu uso e a consciência do seu poder, exigiu uma longa aprendizagem. Essa aprendizagem foi feita praticamente a partir do zero, contudo foi o veículo e o sustentáculo da ocupação do espaço público. As palavras de ordem de então, na sua expressão rudimentar, eram justamente isso: a imposição de um vocabulário iconoclasta que estabelecia outro tipo de relação entre o espaço público e o poder e a sua linguagem (sendo que esta linguagem do poder era necessariamente continuadora de linguagens anteriores, ainda que agora usada por novos personagens e outro regime).

O novo uso da palavra exigiu, é claro, a invenção de narrativas culturais que num primeiro momento auto-representassem o país, num segundo momento o identificassem para o exterior e num terceiro o tornassem pertença de uma comunidade maior, de uma internacionalização.

Assim dito parece lógico, fácil, evidente. Contudo não o foi, e isto porque se partiu praticamente de um balbuciar, acrescido da dificuldade de não termos nomes para as coisas novas que nos estavam a acontecer, nem para aquelas que vinham de longe e de fora e que não sabíamos como acolher. O país tinha vivido muito afastado dos debates filosóficos europeus, da produção científica norte-americana, da revolução sexual, da arte pop, da nova História, dos debates ideológicos sobre os vários modos de ser marxista, da moda francesa, da criação musical moderna, do ambiente de crença europeia.

Ora, este país chegava à revolução e descobria a falha enorme que o habitava. E a palavra foi essencial para recuperar o que poderia ser recuperado, criando narrativas de um passado não vivido, histórias e reportórios, e resgatando o que podia ser resgatado da Europa e da América do Norte. (Não é por acaso que a rede das bibliotecas nacionais é uma das mais marcantes iniciativas de política cultural, comum a vários decisores políticos de modo a poder estabelecer-se como âncora da relação do país consigo mesmo e com o mundo.)

E é ainda graças à palavra e ao seu poder de construção e de desconstrução que hoje, mesmo voltando a viver tempos de afastamento do mundo, conseguimos iluminar parte dos dias.

Mas a palavra não foi preponderante apenas nos tempos revolucionários e logo depois, nos tempos de identificação do país. Desde então ela impulsionou a linguagem musical fazendo surgir criações notáveis – desde simples canções de protesto a composições complexas de várias artes de que é exemplo excelente a obra Os Dias Levantados de António Pinho Vargas e Manuel Gusmão. Ela impulsionou o cinema, esse mesmo cinema português de característica péssima sonoridade, sintoma ou manifestação dessa inexperiência do uso da palavra, cinema que filmou rostos em protesto e revolta em curso na Torre Bela, de Thomas Harlan e no Bom Povo Português de Rui Simões, ou o amor às fábulas e às pessoas no Trás-os-Montes de António Reis e de Margarida Cordeiro. Ela trouxe a força do teatro irónico, violento para os opressores, em peças como E não se pode exterminá-lo?, cenas de Karl Valentim pelo Teatro da Cornucópia, e encenou a justiça em O círculo de giz caucasiano de Bertolt Brecht pelo Teatro Novo Grupo, e representou o respeito pelos diferentes povos do país no Montedemo que O Bando levou a cena. Houve tanta coisa.

Mas antes de todas essas coisas, antes destas formas já sofisticadas (técnica e linguisticamente), a palavra tornou-se visível de uma forma nova, breve, sólida e comunitária. Refiro-me aos murais de intervenção política.

Associados à palavra – havia sempre neles uma palavra de ordem, uma expressão performática –, os murais mostram a descoberta de que afinal o país podia também ter uma linguagem visual, uma cultura visual fora de museus e galerias. O país atrevia-se e aprendia essa outra linguagem, compreensível para praticamente toda a gente e portanto universal, e com a ajuda dela provocava mais debate, além de descobrir essas formas inovadoras de expressão que reivindicavam instalar-se no espaço público.

Os murais de então não eram decorativos como os de hoje, eram rústicos nos esquemas mas podiam ser de grande plasticidade, mostrar grandes tensões dramáticas nas suas representações. Respondiam bem à euforia, eram expressão dela. E na sua aparente simplicidade cumpriam, juntamente com a palavra, a função orientar os olhares para um mundo novo e desconhecido. Não se pode dizer que apelar ao direito de olhar tenha sido pouco. Esse é um direito das sociedades livres.

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