A filha de ferroviários

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O universo ferroviário é o pretexto para uma reflexão sobre as linhas de cruzamento entre o artístico e o social

“Eu sou filha de ferroviários”, diz Carla Filipe, “e tudo o que está aqui tem implicações para mim a nível pessoal.” A afirmação não é descabida; a exposição, Da cauda à cabeça, que acaba de inaugurar no Museu Berardo, em Lisboa, coloca-nos perante uma narrativa que tem por mote o universo dos caminhos-de-ferro. As três salas do piso 0 estão repletas de objectos que, como documentos de um mundo prestes a desaparecer, evocam o trabalho, os lugares, os acontecimentos marcantes deste sector durante o século XX. Há uma história subjacente ao trabalho de recolha; ou, melhor, tal como na investigação histórica, há uma narrativa que os objectos servem, depois de seleccionados, de desligados do seu contexto, de conservados, de expostos. Perguntámos a Carla Filipe se tinha construído uma ficção. Respondeu que não.

Pedro Lapa, comissário da exposição, acentua também este lado documental: “Há objectos aqui que parecem mesmo ter lugar num museu de arqueologia.” Traves, moldes, peças utilizadas nas vias férreas ou nas estações de comboio isolam-se nas paredes e no chão não apenas como documentos, mas também como objectos onde a estética se alia à reflexão crítica. Na primeira sala, um conjunto de painéis de azulejo brancos, partidos ou virados do avesso, mostram restos de fuligem que se confundem com o desenho a carvão. Na parede em frente, uma montagem de portas e janelas avulsas, recuperadas em antigas instalações ferroviárias, colocam-nos de entrada perante aquela que será uma constante em toda a exposição: a divisão entre trabalhadores e dirigentes percebida pela própria natureza dos objectos expostos – madeira de qualidade para uns, pinho para outros; fechadura metálica para os primeiros, um cordel com um trinco para os segundos. Lapa assinala outras referências que encontramos: “Noto aqui a apropriação de certas obras de Pedro Cabrita Reis, por exemplo, e também, de uma maneira mais lata, do conceito de instalação.”

Um pouco mais longe, há móveis: armários, arquivadores, mesas. Carla Filipe volta a acenturar as distinções que já se notavam antes: “Em alguns móveis não há caruncho, a madeira está tratada; pertenciam a alguém que se situava num ponto mais elevado da escala laboral.” Colecções de bonés, pertencentes a um ex-ferroviário, dispõem-se em dois lugares distintos da exposição, assinalando uma outra constante deste trabalho: a ideia de colecção. A artista salienta que muitos objectos pertencem à sua colecção pessoal, sendo que outros vêm de arquivos distintos, e foram emprestados propositadamente para esta exposição. Estes conjuntos de objectos completam-se, já no final, com a recriação de uma cerca feita de elementos de betão sobre um fundo de azulejo quadriculado, enfeitado com vasos de plantas decorativas, uma decoração característica de qualquer estação de caminhos-de-ferro portuguesa.

Olhar interior

Assim, poderemos afirmar que Carla Filipe procede por apropriação e acumulação: acumulação de objectos documentais, apropriação de estilos, géneros, disciplinas artísticas. Mas o trabalho não se fica por aqui. Duas séries, uma feita à base de polaroids legendadas, outra de desenhos feitos com uma antiga máquina de escrever, por vezes associados à colagem, relatam aspectos do quotidiano ferroviário. No primeiro caso, a história de um espaço específico no Entroncamento; no segundo, intitulado Ex-votos, um dos momentos fortes da exposição, Carla Filipe declina histórias específicas relacionadas com o tema da morte: desde os suicídios nas linhas de caminho-de-ferro até às greves, passando por um poema de Manuel da Fonseca, a silhueta de uma cruz de estrada, que convoca de modo muito nítido este aspecto mais emotivo do trabalho ferroviário. É aqui, como nas bandeirolas coloridas no tecto, que o projecto se encontra com a intimidade que a artista referia na afirmação que citámos no início.

Pedro Lapa não previu de início que as exposições individuais se sobrepusessem às colectivas neste espaço do Museu. Mas, para além de revisitações da história do século XX, gosta também de apostar em exposições prospectivas da contemporaneidade. É aqui que o trabalho desta artista entra, sobretudo porque lhe parece que ele tem uma resposta original, positiva e pertinente a uma pergunta que se coloca sempre na presença de um artista mais novo: é possível que as práticas artísticas possam hoje resgatar alguma subjectividade crítica? Neste caso, pensa que sim, mesmo que a abordagem ao tema que sempre tem estado presente na obra de Carla Filipe seja o de um olhar interior, vivido, de um corpo que se coloca sempre ao rés da via, do caminho, da estação, e nunca do seu exterior.

Não há nesta exposição nenhuma reprodução das decorações em azulejo azul e branco das estações de combóios, sempre representando cenas historicistas ou folclóricas – e sempre com uma visão do trabalho que é decorativa, em vez de produtiva de uma consciência. Também não há nenhuma fotografia ou imagem que considere este universo exclusivamente como um objecto de fruição estética, isolando-o do contexto humano e social que o formou. Ao invés, Carla Filipe escolheu um paradigma de peso, e completamente diferente: os dois filmes que passam em loop numa sala da exposição, o Douro, Faina Fluvial de Manoel de Oliveira e um documentário de Cotinelli Telmo, ambos surpreendentes pela modernidade e pela falta de concessões com que tratam a temática do trabalho.

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