Os lugares e as pessoas de Catarina Botelho

A obra de Catarina Botelho continua a constituir-se como uma indagação das fronteiras que separam o público do privado. Três novos projectos em Lisboa, Porto e São Paulo

Vêem-se cada vez mais nas ruas do centro e dos subúrbios de Lisboa, esvaziadas e entaipadas. Livrarias, mercearias, lojas de roupa, pastelarias. Imagine-se como reagem aqueles que as frequentaram, por vezes, durante décadas: primeiro uma comoção fria, a seguir um lamento discreto e sincero. Provavelmente será isso, também, que o transeunte exprimirá depois de olhar as fotografias que Catarina Botelho (Lisboa, 1981) expõe até 5 de Janeiro em Inventário, a convite do projecto A Montra, na Calçada da Estrela. Sim, exibem-se na montra de uma loja devoluta e revelam superfícies encerradas, vestígios de um comércio local que não resistiu à violência silenciosa da nova sociedade. “Quando me convidaram para expor numa montra de uma loja, também ela falida, pensei em refletir sobre essa questão e sobre o modo como as pessoas se relacionam com o espaço público, como mantêm ou não relações de vizinhança”, conta a artista. Uma ideia e uma prática quotidiana foram determinantes para o trabalho: a colecção e o passeio por ruas e avenidas. “Fui percorrendo a cidade e acumulando, recolhendo imagens mas não fiz um mapa de Lisboa. Quis ‘coleccionar’ os espaços que estavam fechados para o olhar de quem passa. Interessou-me a ideia de bloqueio que está muito presente. A cidade está fechar-se sobre si própria”, sublinha.

Diz Catarina Botelho que houve quem confundisse as fotografias com anúncios de venda de imóveis, equívoco rapidamente desfeito. De pequenas dimensões, revelam fachadas, vidraças, cartões, jornais que protegem o interior de olhares curiosos. “Umas deixam ver mais para dentro, outras não”, comenta. “Depois há camadas, coisas que foram deixadas pelas lojas, ou adicionadas. Objectos na rua que dão pistas para entendermos os contextos sociais ou os jornais que nos informam da data em que as lojas faliram.” Aqui, todavia, só há um tempo: o de um capitalismo que garante a vida apenas a quem tem mercado. Talvez por isso, não se vislumbram nestas imagens a “beleza melancólica de um passado desaparecido” que Beaumont Newhall via na obra de Charles Marville ou a dignidade dos lugares habitados que a cineasta francesa Agnès Varda retratou em Daguerréotypes. Apenas superfícies encerradas. “Não têm anúncios a dizer ‘aluga-se’. Parecem caixas de ar. A relação exterior/interior quebrou-se totalmente.”

Entretanto, só mentindo se nega a qualidade pictórica das fotografias, com as suas cores, os seus reflexos, as suas “velaturas”, a sua composição. “É a primeira vez que fotografo na rua, mas, a propósito de superfícies, admito que há qualquer coisa de pintura, são planos bidimensionais. Ao mesmo tempo, podiam fazer parte de uma ‘arqueologia’ da cidade”, diz a artista.

Marcas da intimidade

Noutras séries de trabalhos, a relação interior/exterior cede o lugar às relações entre o público e o privado ou a intimidade e a exposição. É o que acontece, por exemplo, em O outro nome das coisas, patente na Galeria Presença, no Porto (até 11 de Janeiro). De seculares paredes de mármore recortam-se recipientes de plástico que as famílias usam nos hammams (banhos públicos) de Budapeste. São metonímias visuais da vivência dos corpos e dos gestos (nunca reproduzidos) num espaço público não privatizado, partilhado corpo-a-corpo, face-a-face. Os contrastes cromáticos, a referência à pintura (pense-se em Giorgio Morandi), a vulgaridade dos objectos estabelecem ligações com Memória Descritiva, realizada este ano, no âmbito de uma residência artística, na Fundação Alvares Armando Penteado, em São Paulo (as imagens foram reproduzidas em Outubro passado no jornal do programa Próximo Futuro, da Fundação Calouste Gulbenkian).

A ausência de corpos humanos repete-se, mas os lugares e os objectos fotografados não são os mesmos. “O projecto começou à volta da arquitectura modernista brasileira e da sua intenção de construir espaços públicos abertos a todas as classes sociais onde as pessoas se cruzariam, estabeleceriam relações. Mas fiz uma lista desses espaços e dei-me conta de que muitos tinham sido privatizados.” Impôs-se, então, uma ligeira mudança de planos: fotografar os halls de auditórios, museus, da própria fundação, espaços que resistiam ainda à doença do lucro e nos quais certas promessas do modernismo cintilavam, embora envergonhadamente. “Quis em seguida abordar pelas pessoas que cuidam da sua manutenção, que têm uma relação táctil com eles, assegurando a sua limpeza. Interessou-me essa relação de intimidade, que quebra a impessoalidade do espaço, redimensionando-o.” Nas fotografias, vemos objectos de limpeza (máquinas enceradoras, pás, esfregonas) que os trabalhadores deixaram para uma pequena pausa. “Há uma relação manual com a superfície que quebra a dureza e a frieza dos fundos assépticos dos edifícios, e os objectos são muito verticais, quase corpos ou esculturas. Depois existe uma dimensão talvez mais subtil que tem a ver com a nossa vivência da arquitectura e as relações de classe num projecto como o modernismo brasileiro.”

Lado pictórico e dimensão social, relações de classe e sedução das imagens. Como conciliar estes elementos sem que uns ofusquem os outros? “Penso que um trabalho de arte tem sempre várias dimensões que se conjugam e que, numa primeira ou segunda observação, nos cativam de forma diferente. Há, sobretudo em Inventário, uma carga política, e vou continuar a fazer este projecto, mas não me quero fixar apenas numa questão. A riqueza da arte está exactamente na sua capacidade de tocar várias dimensões num mesmo trabalho e parece-me que a força pictórica destas obras abre-lhes portas nesse sentido.”

Sugerir correcção
Comentar