A afición caliente de Nervión sabe o que é ganhar no limite

O Sevilha é um orgulhoso representante do Sul num futebol espanhol bipolarizado entre Real Madrid e Barcelona. Os adeptos estão habituados a sofrer.

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Marcelo del Pozo/Reuters

À entrada da Ciudad Deportiva Ramón Cisneros, em Sevilha, está uma estátua de bronze, de António Puerta o herói caído sob o sol escaldante da Andaluzia que nunca mais se levantou. Naquela manhã, os jovens da equipa C do Sevilha tiram uma fotografia de fim de época junto à estátua de Puerta. Alguns destes jovens estarão hoje em Turim, tal como Chesco Garramiola, o treinador, para fazer parte daquilo a que ele chama afición caliente. Ele nunca chegou à equipa principal, mas lembra-se de quando ainda era um jovem jogador da cantera e o Sevilha estava no mapa-mundo do futebol por uma simples razão, por ter uma versão inchada e mais lenta de um génio, Diego Armando Maradona.

“Cada treino tinha duas, três mil pessoas. Vinham fotógrafos todos os dias”, recorda o treinador do Sevilha C. Maradona em Sevilha na época 1992-93 é uma colorida nota de rodapé na história centenária do clube andaluz. Apenas uma época o astro argentino animou as bancadas do Ramón Sánchez Pizjuán, o estádio do bairro de Nervión tapado por um centro comercial que serve de casa ao Sevilha desde 1958. “Tivemos muitas esperanças quando ele veio, mas já não era o mesmo do Nápoles”, diz Manuel “Manolo” Jimenez Amador, que também estará entre a afición caliente em Turim, mais uma para juntar às muitas viagens que já fez pelo clube. Maradona não deu títulos ao emblema andaluz, apenas notoriedade e alguns momentos de magia. El Pibe, numa equipa em que também estavam um jovem Diego Simeone e Davor Suker, deixou poucas memórias aos adeptos.

Não seria preciso trocar uma única palavra com Manolo para perceber qual era o seu clube de coração. O porta-chaves onde tem as chaves de casa e da sua motorizada (trabalha como mensageiro) é o emblema do Sevilha, igual ao que é feito de mosaico e que está numa das paredes do Sánchez Pizjuán, rodeado de vários outros emblemas, entre eles uma versão simplificada do do Benfica. “Sevilhano e sevilhista. Gosto das coisas da cidade, da Semana Santa, da Feria, das touradas”, são as primeiras palavras de Manolo, que marcara encontro junto ao escudo gigante do estádio. Uma combinação de conveniência, por ser um local simbólico e facilmente identificável por um visitante estrangeiro, e para poder ir resolver um problema com o bilhete — o nome estava mal impresso e não podia correr riscos de ficar à porta no dia da final.

Manolo não podia ser mais sevilhano. Foi toureiro, um “matador”, como o pai e o avô, respectivamente Rafael e Manuel, todos com o mesmo apelido de arena, Chicuelo — alcunha que remete para a chicuelina, lance de capote no toureio a pé. Mas, em 2003, foi colhido por um touro, sofreu múltiplas fracturas no pescoço e na cabeça e esteve em perigo de vida. Abandonou as touradas e a sua atenção virou-se mais para o Sevilha, o seu clube desde que era criança, primeiro por influência do pai, depois pela acção do tio, que o começou a levar aos jogos. Manolo Chicuelo é daqueles adeptos que sabe tudo do clube, que se lembra de todos os jogos que viu, de todos os jogadores e treinadores. “Andaram por cá o Toni [como treinador], o Peixe, o Agostinho, o Duda. Os portugueses que estão cá agora, Beto, Diogo e Carriço, são muito bons. Portugal está muito perto, deviam trazer mais.”

É evidente o orgulho sevilhista de Manolo Chicuelo, que para ele também funciona como uma afirmação de um clube do Sul, da Andaluzia, num país onde a maioria das discussões de futebol são sobre Real Madrid e Barcelona. Em Sevilha, garante, não há merengues nem culés. “Sevilha está no Sul de Espanha e é difícil que uma equipa esteja na primeira divisão, mas o Sevilha é fixo. Aqui, são sevilhistas ou béticos [adeptos do Betis, o rival das riscas verdes e brancas]. Não há adeptos de Real e do Barça. Só há uma peña [núcleo de adeptos] do Madrid em Sevilha e acho que a do Barcelona fechou”, refere o antigo toureiro, que apresenta ainda o seguinte dado, apoiado por um estudo feito em 2013: “O Sevilha é a segunda equipa mais odiada de Espanha a seguir ao Real Madrid, porque é uma equipa que dá problemas e que não se conforma.”

Em termos de participações na primeira Liga espanhola, o Sevilha está no sétimo lugar, com 69 presenças, atrás de Real, Barcelona, Valência, Athletic Bilbau, Atlético de Madrid e Espanyol. Em termos de títulos, tem apenas um, conquistado em 1946, há quase 70 anos. Depois, veio o ressurgimento no século XXI, com José Maria del Nido, que construiu uma equipa de estrelas como Luís Fabiano, Kanouté, Saviola, Dani Alves, Jesus Navas, Adriano, sob a orientação técnica de Juande Ramos.

E vieram os dois títulos da Taça UEFA, em 2006 e 2007, frente a Middlesbrough e Espanyol, para dar uma prova de vida do sevilhismo — um feito apenas igualado nesta prova pelo Real Madrid em 1985 e 1986. “Estivemos mais de 50 anos sem ganhar títulos e o nosso único título era ser sevilhista – que é o maior de todos”, refere ao PÚBLICO José Castro Carmona, o presidente do clube andaluz, injectado com o “bendito veneno do sevilhismo” pelo tio, irmão da mãe, porque o pai não gostava de futebol.

A afirmação europeia quase que era acompanhada pela afirmação interna. Quase que deu para ganhar a Liga espanhola em 2007, chegando à última jornada com possibilidades de ser campeão, mas acabaria por ficar em terceiro, atrás de Real e Barça. Mas ainda deu para ganhar a Taça do Rei pela quarta vez em 2010, o último título conquistado pelos andaluzes. Esta foi a herança de Del Nido, o presidente que está preso e com quem os adeptos têm uma relação de sentimentos contraditórios. Rejeitam os escândalos de corrupção que o mandaram para a prisão, mas admitem que fez um bom trabalho. Manolo Chiquela não tem dúvidas: “Foi um presidente muito bom. Cometeu erros, mas fez os adeptos acreditarem que o clube podia ser campeão.”

O ressurgimento europeu da equipa andaluza surge numa época de sofrimento para o Betis, que foi uma das vítimas do Sevilha na caminhada até Turim — uma eliminatória “esquizofrénica” que começou com um triunfo bético no Sánchez Pizjuán por 2-0 a que o Sevilha respondeu com uma vitória por 3-0 no Benito Villamarín. A equipa das riscas verticais verdes e brancas vai jogar na segunda divisão em 2014-15, para grande satisfação de Manolo, que diz nem sequer perder tempo a gozar com a outra metade futebolística da cidade.

Prefere concentrar-se para mais uma noite de sofrimento que acabará bem, como já teve tantas no passado recente, como o golo de António Puerta nas meias-finais da UEFA em 2006 ao Schalke 04, o do guarda-redes Palop contra o Shakthar Donetsk nos “oitavos” da UEFA em 2007, o de Mbia em Valência há duas semanas, todos “in extremis”. Seja em que estádio for, desde que o Sevilha esteja em campo, Manolo não sai antes do último segundo.

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