Instruções para as minhas exéquias

Há dois requisitos para se poder deixar uma lista com instruções para as suas próprias cerimónias fúnebres. Em primeiro lugar, estar vivo. Em segundo, ser abençoado por uma humildade sem par, uma modéstia que aparece uma vez por geração, que faz com que o sujeito fuja de qualquer tipo de protagonismo.

Felizmente, estou possuidor de ambos. Para que o meu funeral não se transforme numa demonstração de Zé Dioguismo que prevejo excessiva, deixo algumas notas.

Para começar, que ninguém chore. Não mereço ser chorado, como acontece vulgarmente com outros defuntos. Que a minha morte não cause a consternação habitual, mas sim uma consternação em que as pessoas disfarcem a tristeza através de festejos. Não quero que as pessoas estejam tristes porque se sentem obrigadas. No meu enterro, não haverá obrigações. Exijo que estejam alegres e a festejar. Se acharem que vão chorar, retirem-se. Cá fora, estarão enfermeiros do INEM preparados para aplicar injecções de Lexotan aos mais histéricos.

Ignorem as tradições cujo objectivo é ajudar as pessoas a lidar com a morte e respeitem antes a minha modéstia. Não sejam escravos de como as convenções sociais estabelecidas há séculos vos dizem para se comportarem. Sejam livres e comportem-se como eu digo.

Também não quero que se vistam de preto. Nada de cores escuras e tristes. Vistam o que apetecer, o que for mais confortável. Desde que seja lilás ou cor de laranja. Quero as pessoas de lilás para um lado e as pessoas de cor de laranja para o outro, para disputarem uma partida de vólei enquanto o caixão não chega. À melhor de 5 sets, até aos 21, ponto directo. Ou seja, nada de formalismos, tudo muito casual. Quero que seja um enterro em que as pessoas se digam: “Eh, pá, foi super cool!”. O género de evento que podia ser coberto pela Time Out.

Dispenso elogios fúnebres. É enfadonho para quem assiste. E é difícil contar histórias giras sobre mim. É por isso que haverá um casting que indicará os mais talentosos para subirem ao púlpito. Devem ter boa colocação de voz, pois a cerimónia vai ser gravada.

Em relação à mise en scène, serei apresentado em caixão aberto. Depois, fechado. Depois, aberto. Depois, fechado. E assim sucessivamente. A tampa vai ter um daqueles sistemas hidráulicos que o IKEA usa para demonstrar que as ferragens das suas gavetas têm robustez que chegue para 1 milhão de aberturas. O abre-e-fecha proporcionará um apelativo efeito visual, reminiscente do Comboio-Fantasma da Feira Popular, ao mesmo tempo que areja o cadáver.

Não que vá ser necessário, uma vez que estarei embalsamado. O recheio será esferovite. Para o caso de alguém se comover e desmaiar em cima de mim. O corpo molda-se, como um pufe, e ampara a queda. Evitará situações como no enterro do meu tio Alfredo, em que uma das suas amantes perdeu os sentidos, bateu com a cabeça no rigor mortis do defunto e partiu três dentes.

No fim das exéquias, serei cremado. Depois, quero que as cinzas sejam espalhadas logo à saída do forno e que toda a gente participe na reconstituição do corpo, num divertido puzzle. Para auxiliar as pessoas, estarão alguns daqueles rapazes que aparecem no YouTube a resolver o cubo de Rubik em menos de 20 segundos.

Uma cerimónia simples. Não quero chamar a atenção.     

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