Casa grande sem senzala

1.  Devo ao pernambucano Kleber Mendonça (realizador de O Som ao Redor, que se estreou em Portugal género toca-e-foge) ter visitado a casa de Gilberto Freyre mesmo antes de apanhar o meu voo de volta para o Rio de Janeiro. Kleber tinha-me dito para não deixar de ir ao Poço da Panela, um recanto bucólico do Recife onde velhos casarões resistem, outros ficaram novos-ricos e alguns estão abandonados. A morada de Freyre não seria longe, perguntei num boteco com papagaio à porta. Sabiam: era para diante, no bairro de Apicucos, outrora engenho e chácaras. Mais um pedaço de engarrafamento para lá chegar e pronto. O casarão rosa de Freyre ainda não está rodeado de torres. Entra-se por um jardim tropical, jogo de sol e sombra, escadaria, janelas de guilhotina, pátio de azulejos. O anfitrião morreu em 1987. Como 1987 foi há séculos.

2. Casa-grande & Senzala virou sinónimo e língua geral. Mas o alcance do autor vai bem além desse título, em obras como Aventura e Rotina, que fixou a ideia do luso-tropicalismo. “Menos do que teoria, talvez doutrina, o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre moldou e molda atitudes, representações e políticas vividas nos diversos espaços de língua portuguesa”, resume um artigo de Cristiana Bastos, a antropóloga lisboeta com quem mais me cruzei, ao vivo ou por escrito, a propósito do Brasil. Freyre “influencia sobretudo a crença numa ausência de racismo, ou num brando tratar das diferenças por parte daqueles que se exprimem em português, radicada numa hipotética capacidade de entrosamento dos colonizadores portugueses com os meios e povos tropicais”. Publicado há anos na revisa Análise Social, este texto de Cristiana contrapõe os “tristes trópicos” de Lévi-Strauss ao “alegre luso-tropicalismo” de Freyre através das notas de viagem de ambos. Enquanto Lévi-Strauss se baseia na alteridade como “pilar do social e do real”, Freyre propõe a similitude como marca do mundo de colonização portuguesa. Ou seja, “aquilo que é ‘outro’ em Lévi-Strauss aparece como ‘nós’ em Freyre”, onde um “orientalizou” os trópicos, o outro “tropicalizou” um mundo lusófono. Continuo a topar com esse mano-a-mano nas livrarias do Recife ou do Rio, o pessimista francês ao lado do optimista pernambucano, sempre em destaque na mesa de Ciências Sociais. Entretanto, a violência do caldo brasileiro desmente todos os dias a miscigenação branda de Freyre. Mas também é argumento para a retomar: se o passado não foi assim, o futuro seria esse ou não será. E neste impasse vejo muito do Brasil agora.

3. “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo o brasileiro”, escreveu Gilberto Freyre, “outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’”. Visitar a casa dele é tão proustiano quanto isso, pelo menos numa terça-feira. Não há turistas, nem um. Chegando ao pátio, vem Jessica, 21 anos. Cresceu nesta rua, foi estudar Turismo, acabou em guia. Todas as visitas são guiadas, neste caso individualmente. Há cafezinho numa mesa, como se Gilberto e Magdalena estivessem lá dentro. Uma história de amor teimoso que Jessica já vai contar.

4. A casa era um engenho, Freyre comprou-a em ruínas. Estamos na primeira sala: estantes envidraçadas, retratos de família e, numa mesa ao centro, um fac-símile da primeira edição dos Lusíadas em estojo de prata oferecido por Portugal. Passamos à sala de jantar: aparadores, pratas, painéis de azulejos azuis e brancos com cenas complexas. Jessica explica que vieram de uma igreja demolida para a ampliação do aeroporto da Portela. Postos à venda, Freyre comprou-os e pediu autorização para os fazer sair. “O Governo respondeu que onde ele estivesse estaria Portugal.” Jessica diz isto com toda a solenidade. Em volta há nichos, candelabros, fruteiras, e em volta das fruteiras veios de água contra formigas. Uma casa luso-tropical, com certeza, azulejos lisboetas e formigas brasileiras, cachaças artesanais e brasões portugueses. Freyre também gostava de licores, inventou mesmo um. Sabe-se que leva “pitangas do jardim, raspas de canela e licor de violeta feito pelas freiras virgens e místicas do Bom Jesus, no interior de Pernambuco”. Mas falta um segredo.

5. As condecorações, incluindo a de Isabel II, destaca Jessica, estão na biblioteca, entre centenas de edições de Freyre em todo o mundo e retratos de filhos e netos. De resto, os livros nesta casa somam 40 mil, espalhados por todas as divisões, fora casas de banho e cozinha (tão modestas umas quanto a outra).

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6. No escritório, Gilberto é um boneco de tamanho natural, semideitado na sua poltrona favorita de couro, uma perna por cima do braço, porque era assim que gostava de escrever, explica Jessica. Cabeleira branca, bigode branco, género avozinho da Heidi. E fazia umas pinturas naif que aqui estão. E teve dificuldade para aprender a ler, temeu-se uma deficiência. Até que Mr. William o alfabetizou em inglês, a que se seguiram latim e português e milhares de páginas de bibliografia até hoje estudada nas universidades. Saibam que para as escrever Gilberto tinha ao lado da poltrona um sinalizador de humores. Três hipóteses: “SILÊNCIO estou mesmo a trabalhar”, “CUIDADO estou de muito mau humor”, “AVANCE estou bem humorado”.

7. Os quartos ficam em cima. O principal, do casal, parece mais uma sala, com tantas janelas à volta, a cama no centro. “Gilberto era muito supersticioso, acreditava que cama voltada para a porta chama a morte”, diz Jessica. Espelhos, toucadores, poltronas, cadeiras de balouço, armários com as gravatas de Gilberto, tapetes tecidos por Magdalena. Provas do amor teimoso numa mesinha: de um lado O primeiro beijo, poema de Gilberto para Magdalena; do outro um texto dele que diz: “Os amores superficiais são os confortáveis, sem inquietação, sem dor, sem ciúme, sem nada. E eu estou cheio de tudo isso. O que queria era você junto de mim para sempre e desde agora. Ou isso ou esquecê-la por completo.” Tentou três vezes conquistá-la, conta Jessica. “Ela dizia que não estava à altura. Ele já tinha publicado Casa-grande... Mas à terceira ela aceitou, e em três meses noivaram, casaram e vieram morar aqui.” A casa de Apicucos, que em tupi quer dizer “dois rios que se encontram”.

8. Filha e filho tinham cada um seu quarto, colecções de arte indígena no corredor, crucifixos misturados com anjos cangaceiros. Todas as janelas têm verde e luz. Lá fora, um caminho de pitangueiras leva ao pavilhão onde estão as cinzas. Depois, logo descendo a rua, voltamos a 2014.

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