Cultura em Tavira é mais do que um programa dirigido a veraneantes

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Autarquia aposta na cultura sem perder de vista a tradição marítima Melanie Maps DR

Tavira é uma cidade esquiva ao protótipo de massas das frenéticas aglomerações algarvias, tem um pausado ritmo de vida e aderiu ao conceito das slow cities. A porta de entrada para a Ria Formosa possui um areal de ouro e vive a cultura com um cartaz de fazer corar outras de maior dimensão e efervescência turísticas.

Paraíso naturista de praia, do Barril ao Homem Nu, o território imenso de Tavira foi vivido pelos fenícios, conquistado aos mouros por D. Paio Peres Correia, na primeira metade do século XIII. A cidade de serra, rio e mar, orgulha-se dos seus pergaminhos marítimos, pois foi do seu porto que, em 1415, zarparam 200 navios, com 45 mil homens, que apressaram a conquista de Ceuta e do Norte de África. A história militar perdura através do quartel da Atalaia (Regimento de Infantaria n.º 1). A unidade do Exército passou a servir também os interesses culturais: Rui Veloso vai ali actuar, na parada, a 17 de Agosto, no âmbito do programa Allgarve, em organização conjunta com a autarquia local e a instituição militar.

Tourada do mar

A cidade alberga pouco mais de 27 mil habitantes. Se entre os anos 40 e 60 do século passado perdeu muitos dos seus, que emigraram para África e França, quando acabaram as armações de pesca do atum - a tourada do mar, chamavam-lhe assim, no Arraial Ferreira Neto (agora um hotel) e no Barril, onde ainda perduram vestígios, já quase arqueológicos, com os ferros das armações depositados no cordão dunar -, o recente Censos dá-lhe o primeiro ganho de residentes em décadas, na ordem das duas mil pessoas.

A pequena cidade do Sotavento (literalmente, para onde sopra o vento) é também capaz de atrair importantes competições náuticas para o seu campo de regatas, com características de vento (sudoeste) invejáveis. Diante da ilha, centenas de embarcações realizam, quase todos os anos, competições de escala internacional. O Europeu de Optimist concluiu-se há pouco, avançando agora as embarcações 420 para o campeonato continental. Manter estas condições é, também, assegurar, mais turismo ao longo do ano e mais bem-estar económico para as populações.

Jorge Botelho, que em 2009 reconquistou para o PS a presidência da câmara, que até então era conduzida pelo social-democrata Macário Correia (agora em Faro), não consegue ainda explicar a que se devem as alterações. Se à custa dos novos trabalhadores - a maior parte com origem no Leste da Europa -, pela fixação dos jovens, ou pela captação de mais cidadãos seniores estrangeiros, que têm optado por passar os tempos de reforma numa região de clima temperado como o Algarve. Mas está decidido a trabalhar para que não fujam.

O autarca acredita que, para a população crescer, é preciso dar-lhe condições para se fixar e trabalhar. Mas afiança que a aposta será sempre indissociável às tradições da cidade. A pesca está ao alcance da mão. Um sector que, como a agricultura, não pode ser perdido de vista.

"Seria fácil fazer mais cidade turística, mesmo com os condicionalismos financeiros actuais, mas não podemos abdicar da nossa tradição piscatória. Está em primeiro lugar e é em função disso que vive a cidade", afirma Jorge Botelho. O autarca defende mais apoios para a pesca, com melhores condições de manobra e atracagem das embarcações, para que a Docapesca não vá para outras paragens. E, enfatiza, a verdadeira matriz da cidade reside na pesca, complementada pelo novo pólo industrial em Santa Margarida, para que possa atrair novos investidores, "seja para criar estruturas de frio para o pescado, ou para outras actividades".

Mais náutica de recreio

O porto, em fase de avaliação de candidaturas a concurso, será financiado também por fundos comunitários (dez milhões de euros) e mudará a face ribeirinha da cidade. A infra-estrutura será implantada já na chamada estrada das Quatro Águas e libertará o actual espaço do cais de acostagem para fruição pública urbana. A estrada que conduz ao embarcadouro para a ilha vai ser requalificada, ao abrigo do programa de requalificação urbana Polis, tal como os cais das actividades marítimo-turísticas, e procurar-se-á promover a náutica de recreio, dotando a zona de novos espaços de amarração, algo que tem sido negligenciado pela autarquia, que reconhece a importância deste segmento turístico.

O Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos também não contemplou aquela actividade nos recentes novos portos de abrigo de pesca nas pequenas localidades de Cabanas e Santa Luzia. Os navegadores de recreio queixam-se e a verdade é que aquelas infra-estruturas continuam subaproveitadas, ou reservadas às concessões das actividades marítimo-turísticas.

Só agora a cidade vai abrir as margens do Gilão, também a nascente, à iniciativa privada imobiliária, do âmbito residencial com face inovadora - com entrada lacustre e embarcadouros privados. Um segundo projecto poderá englobar a criação de uma marina ou um porto de recreio. Nas Quatro Águas há estruturas marítimas de dois clubes, mas nenhuma delas aceita serventia de não associados. Sem outro guincho de acesso das embarcações ao mar, a navegação terá que procurar outros locais, seja em Vila Real de Santo António ou em Olhão.

Dieta de convívio

Sobre Tavira recai agora a candidatura portuguesa da Dieta Mediterrânica a Património Imaterial da UNESCO. Para a autarquia, segundo expressa numa nota publicada no seu site na Internet, a iniciativa justifica-se "por mérito do seu património imaterial ancestral ainda muito vivo em todo o território, pela diversidade paisagística, produtiva e cultural e uma identidade fortemente mediterrânica". E explica a justeza desses argumentos: um ecossistema lagunar e oceânico possuidor de várias classificações internacionais de grande riqueza biológica, a produção de sal conhecida pelo menos desde o período islâmico, a apanha de mariscos e bivalves, a moliscicultura, os viveiros de ostras, os arraiais do atum e as pescas.

No barrocal destaca-se a produção de citrinos, azeite (em três dos cinco lagares em funcionamento no Algarve, vinho, medronho, figo, alfarroba, frutos secos. Na serra, a produção florestal, o mel, a agricultura de sequeiro.

A dieta mediterrânica, recorda a autarquia, "é um estilo de vida representativo das sociabilidades do Sul da Europa e da bacia do Mediterrâneo com as suas formas particulares de convívio e celebração". Tavira integra há vários anos a rede das slow cities, optando por se afirmar uma cidade tranquila, de cultura e património, ambientalmente preservada. A candidatura à UNESCO "permitirá a actualização do inventário do património cultural imaterial da região e o estabelecimento de medidas concretas de protecção e um impulso renovado às extraordinárias potencialidades de Tavira, do Algarve e de Portugal."

Os tempos não produziram na cidade assim tantos males ou tão profundas descaracterizações visuais como a modernidade consumista vai impondo. Se ao espaço nobre da cidade, testemunhado pelo rio, foi dada excelência à fruição pública, destoa a grande superfície comercial, que não há muito anos aterrou na margem a nascente do Gilão. Também à parcela recente do casco urbano exterior, predominantemente residencial, não foi dada a melhor atenção, mas a velha urbe conserva o romantismo que continua a atrair à cidade mais estrangeiros do que nacionais, tal como ao castelo, às (muitas) igrejas, à transformação de um convento (da Graça) em Pousada de Portugal.

Os executivos camarários têm procurado atrair novos visitantes e manter focadas as atenções dos locais durante todo o ano, não se poupando a esforços para a calendarização perene de actividades de carácter cultural - congressos, aquela que é descrita como a maior Feira da Caça, Pesca e do Mundo Rural, a nível nacional, festivais de gastronomia. Motivos para que a tributação de portagens na Via do Infante seja vista como "um mal desnecessário", na opinião do actual presidente da autarquia, partilhada pelo autarca de Faro.

Se o dia desponta com o brilho dos olhos dos peixes na praça, com o desmaiar da inclemência do sol, a cidade recomeça com outro tipo de faina. Os percursos turísticos estão definidos, em busca da monumentalidade de algum edificado e do castelo, pelo pitoresco dos muitos recantos ajardinados da cidade, ou no remanso das esplanadas. A fileira cultural desponta com o brilho da lua, na Praça da República, com a música nas igrejas e as exposições nas galerias e museus camarárias. "É aqui, pela cultura, que Tavira pede meças a todo o Algarve", remate, com orgulho, o presidente da câmara.

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