Três laboratórios deram entre 2005 e 2007 um milhão de euros em prendas a médicos

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Nélson Garrido

Um único laboratório gastou 2,6 milhões de euros com viagens de médicos a congressos no estrangeiro e outros três ofereceram prendas de quase um milhão de euros entre 2005 e 2007. Estes dados constam num relatório de auditoria que a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) realizou em 2009 ao sistema de controlo do sector da indústria farmacêutica, e a que o PÚBLICO teve acesso. A auditoria ao sector não visou apurar o cumprimento da legislação relativa ao patrocínio de congressos ou às prendas à classe médica, mas debruçou-se apenas sobre o modo como as empresas farmacêuticas declaram as suas despesas do ponto de vista fiscal, tendo detectado várias ilegalidades e irregularidades.

Em 2007 existiam 195 laboratórios a operar em Portugal e os dados mais recentes referem que, em 2008, havia um total de 39.473 médicos, dos quais 24.809 a trabalhar no SNS. A legislação em vigor determina, no caso dos congressos, que os

laboratórios “ apenas podem suportar os custos de acolhimento [inscrição, deslocação e estadia] e estritamente limitado ao objectivo principal da acção” e proíbe a oferta de “ prémios, bónus ou beneficios pecuniários ou em espécie, excepto quando se trate de objectos de valor insignificante e relevantes para a prática da medicina ou da Farmácia” . Um valor fixado em 25 euros.

Se tivermos em conta a informação da auditoria da IGF, e partindo do princípio que nenhuma das ofertas ultrapassou aquele limite, pode-se concluir que só três empresas ofereceram 40 mil prendas em três anos.

O relatório refere que “ o pagamento de encargos com viagens e congressos, predominantemente realizados no estrangeiro” , constitui “ uma prática habitual da indústria na sua relação com os médicos” . O PÚBLICO foi tentar saber que se o

relacionamento entre a indústria e a classe médica mudou desde que, a 4 de Setembro de 1997, o ex-delegado da Bayer Alfredo Pequito denunciou nas páginas do Diário de Notícias que havia médicos a prescrever medicamentos em troca de prendas e viagens a congressos de teor científico duvidoso e com carácter eminentemente turístico.

Denúncia que motivou uma investigação por parte do Ministério Público, que foi apensa a um processo que já estava aberto desde 1995, e que desencadeou a investigação a milhares de médicos e a vários laboratórios farmacêuticos por parte da Polícia

Judiciária.

Para Sandra Barata, do Sindicato das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente – Organização dos Trabalhadores das Indústrias Química, Farmacêutica e Eléctrica, o relatório da IGF “ confirma o que toda a gente sabe: que as coisas melhoraram quando se andou mais em cima dos laboratórios por causa das viagens dos médicos mas que agora esmoreceram e que com a entrada dos genéricos a concorrência voltou a aumentar na indústria e já se promove muito nas farmácias” .

E acrescentou: “ Para nós não é novidade, nem pode ser para a Apifarma ou para os laboratórios. É sempre assim, fala-se no assunto mas depois entra-se num limbo e é bom que estes dados surjam a ver se os laboratórios começam a cumprir o que diz a deontologia para que o delegado de informação médica seja dignificado.”

Confrontado com estas informações, o director-executivo da Apifarma, Rui Ivo, que desconhece o relatório da IGF, disse acreditar que eventuais casos de violação da lei e regras éticas serão “ pontuais” e “ não espelham a situação da indústria” . “ A Apifarma tem um código deontológico rigoroso e uniforme que tem promovido junto dos seus associados e estes têm-no adoptado” , assegurou.

Não são só casos pontuais

A maioria dos delegados de informação médica ouvidos pelo PÚBLICO garante que “ os casos não são tão pontuais” como a Apifarma diz, e alguns garantem até que “ está tudo na mesma ou até pior” por causa das empresas de genéricos. “ As

coisas não estão tão descaradas como há uns anos em que se chegavam a oferecer até electrodomésticos, mas o relacionamento não mudou muito em relação aos médicos de clínica geral, que têm um grande poder de prescrição” , disse uma delegada de uma multinacional, que pediu o anonimato. “ Os delegados continuam a funcionar por objectivos de angariação de médicos e venda de medicamentos e a pressão sobre os clínicos para receitarem os seus produtos continua a ser muito forte” , acrescentou.

Outro delegado de outra multinacional, que também solicitou anonimato, garantiu que se ao nível das grandes companhias e dos médicos especialistas as regras apertaram, já “ as empresas de genéricos, como não vendem medicamentos inovadores, investem forte nas ofertas e bónus aos médicos (clínica geral) e farmacêuticos” .

Confrontado com estas informações, o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, começou por referir que as conclusões da auditoria são “ um problema exclusivo dos laboratórios e da Inspecção-Geral das Finanças” . Pedro Nunes defendeu, porém, que “ se houver suspeitas de promiscuidade entre os laboratórios da indústria farmacêutica e

os médicos, os clínicos também devem ser punidos” . O bastonário disse que estes são, contudo, “ casos de polícia” que “ estão regulados na lei” e que “ quando esta é infringida deve dar lugar a punições” .

O PÚBLICO tentou também ouvir o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos sobre o facto de os farmacêuticos serem o alvo das ofertas e bónus das empresas de genéricos, mas Mário Augusto Barbosa, através do seu assessor, esclareceu que prefere não comentar casos gerais que visam farmácias e não farmacêuticos em concreto. E tentou também, sem sucesso, o presidente da Associação Portuguesa das Empresas de Genéricos.

O PÚBLICO solicitou à Apifarma dados globais sobre o número de congressos em Portugal ou no estrangeiro onde participam clínicos portugueses e quantos vão a estes encontros. Pediu também a verba total que é gasta pelos laboratórios neste tipo de

encontros e no restante marketing mas a Apifarma explicou que estes dados não estão agrupados e que seria necessário solicitá-los individualmente a cada empresa do sector.

O PÚBLICO tentou também obter informação do número de congressos e da participação de médicos neste tipo de eventos junto da Direcção-Geral de Saúde, mas também ficou sem resposta. “ Depois de aferir junto da divisão estatística fiquei a saber

que a DGS não compila essa informação e também não lhe sei dizer que organismo o faz” , respondeu uma fonte oficial da DGS.

Das despesas de representação...

No relatório agora conhecido, a IGF salienta que o pagamento de viagens a médicos só é admissível “ nas situações em que a finalidade subjacente reside na publicidade de medicamentos que é objecto de detalhada regulamentação legal” , sendo que os 2,6 milhões detectados estão fora desta área de “ publicidade e propaganda” , defendendo por isso é que estas verbas deviam figurar na “ tipologia de despesas de representação” .

A IGF defende por isso que “ os custos associados a viagens de médicos não enquadráveis no âmbito da publicidade de medicamentos (…) aconselhará, porventura, a divulgação de instruções administrativas esclarecedoras e uniformizadoras do seu tratamento fiscal” .

Sobre as ofertas, a auditoria concluiu que entre 2005 e 2007, houve duas empresas que gastaram em ofertas mais de 340 mil euros cada [tendo em conta o limite de 25 euros, estes dois laboratórios terão oferecido 13.600 prendas cada], e uma terceira despendeu 219 mil euros em artigos para presentear os médicos, e cujos valores deduzidos individualmente para efeitos de IVA ultrapassaram os 50 euros fixados por lei. Mas a IGF ressalva que “ a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo considerou inconstitucional o estabelecimento, por via de instruções administrativas, de limites máximos para ofertas de pequeno valor” .

... às Ilhas Galápagos

O relatório da IGF revela ainda outra situação irregular: um laboratório comprou por quase 36 mil euros uma unidade de electroencefalografia que se encontra no serviço de Psiquiatria de um hospital no Porto, justificando o “ alegado interesse em ter acesso à informação resultante de eventuais estudos a realizar, considerando o desenvolvimento da sua actividade de investigação e desenvolvimento na área das neurociências” . Para efeitos fiscais, no entanto, o laboratório amortizou quase 26 mil euros do equipamento como “ estando ao seu serviço, quando na realidade está ao serviço de terceiros” .

Há também um presidente do conselho de administração de um laboratório que deduziu despesas de deslocações ao estrangeiro no valor de mais de 11 mil euros. Só que as viagens – “ um Programa Costa Rica à medida + extensão a Guanacaste e Programa Equador + extensão às Ilhas Galápagos” – tiveram como beneficiários o próprio e a

sua família. A IGF afirma mesmo que há “ margem segura para a consideração de que os documentos em causa reportam, de facto, viagens de férias” .

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