As marionetas são uma festa

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As mini performances de Globo.Digital.Glossary, da companhia russa Akhe Teatro Vladimir Telegin

Ao fim de 20 anos um festival não pode ser apelidado de novo mas o Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP), que começa hoje e se estende até 26 de Setembro, vive uma nova fase, quase como se fosse um início.

O desaparecimento, no ano passado, de Isabel Alves Costa, sua fundadora e um dos principais rostos na divulgação do teatro de marionetas em Portugal, levou a que Igor Gandra, encenador e director artístico do Teatro de Ferro, assumisse a direcção do festival. Seu herdeiro, "nado e criado no festival", prolonga agora a ideia que nos últimos anos procurou mostrar de que o teatro de marionetas não era uma subcategoria da criação contemporânea, mas mais um modelo de criação por inteiro. "A dinâmica insatisfeita de pensar nas coisas que era característica na Isabel eu assumo-a como uma aprendizagem", diz.

Ao longo dos anos, e o mesmo acontece nesta edição, os espectáculos que se apresentaram vieram de vários países e extravasando as fronteiras disciplinares do teatro, da dança, da performance ou do novo circo. No passado mais recente, o festival teve como objectivo principal pensar a própria cidade a partir do teatro, já não enquanto edifício, porque se deslocou do Rivoli - Teatro Municipal, onde tinha a sua sede e que também era programado por Isabel Alves Costa, para a Praça D. João I, em frente, como consequência do fim do projecto de teatro municipal por decisão camarária.

Foi um tempo de reflexão e descoberta que levou o festival a uma pesquisa não apenas sobre a forma mas sobre a definição de marioneta contemporânea, numa relação directa e sem filtragens formais induzidas pela fisicalidade de um teatro. Foi ainda uma oportunidade para descobrir de que modo os acontecimentos culturais se inscrevem no quotidiano de uma cidade, interrompendo-o. Os espectáculos, na sua maioria resultando de residências no local e de encontros inesperados, tornavam a praça num ponto de encontro de ideias por desenvolver, explorando não apenas o potencial imagético das marionetas, mas a sua capacidade de integração de elementos voláteis e efémeros.

Exercício de redescoberta

Este ano o regresso às salas tem a ver não com um abandono de uma ideia de experimentação, mas com a possibilidade de apresentação de objectos que nos reenviam para a materialidade da marioneta. É, em suma, um exercício de redescoberta depois de um período de investigação, sem que se perca essa componente de inventividade. Explica Igor Gandra que o perfil do FIMP deve ser construído de duas formas que se relacionam com "uma noção de cultura dentro da cidade". "O festival deve mover-se em duas direcções que são aparentemente opostas, uma de abertura e outra de fechamento. Abrir-se sobre a cidade e o público, olhando para o colectivo. E, por outro lado, fechando-se sobre as práticas e a criação. O legado da Isabel vê-se também assim dessa forma. O caminho que se vai seguir tem muito a ver com o modo como as pessoas o vêem."

Para o director artístico, pensar esta edição do FIMP é também ter em atenção esse percurso - razão pela qual há uma programação pensada para se realizar nas escolas, como Dos Joelhos para baixo, de Márcia Lança, Teatro do Bolhão, dia 18, às 18h, ou Jakush, de Ute Gebert (ESMAE, dia 18, às 21h30, e 19 no Balleteatro, 21h30). São exemplos bastante diversos, um vindo da área da dança e outro usando as marionetas como personagens, que exploram essa abertura discursiva que hoje caracteriza o universo das marionetas.

As escolhas obedecem a um critério exploratório das próprias formas teatrais, sendo o espectáculo de abertura disso o melhor exemplo. Ópera dos 5? - Trans-guetto-express (Mosteiro de São Bento da Vitória, 17 e 24, 21h30) é uma ópera-rock assinada por Regina Guimarães e encenada por Igor Gandra que reflecte sobre o nomadismo na Europa e a impossibilidade de defesa e manutenção dos princípios sociais que a definiram perante a violência exercida em grupos tidos como marginais. É um espectáculo que mistura o teatro, o novo circo, a música e as marionetas, e que teve a sua estreia no Festival Escrita na Paisagem em Julho e que passou pelo Centro Cultural de Belém, chegando agora ao Porto numa altura em que, coincidentemente, a Europa discute as expulsões dos ciganos de França.

Esta possibilidade de leitura, que amplifica as intenções dos autores, permite entender melhor a ideia de um teatro que, segundo Igor Gandra, "está atento ao que se passa". Também o espectáculo do Teatro de Marionetas do Porto Make Love not War (Praça da Cadeia da Relação, dia 25, 22h), partindo do texto clássico de Aristófanes, Lisístrata, que é uma apologia da paz, ganha aqui contornos de intervenção cívica ao trazer para o discurso contemporâneo uma cadeia de valores referenciais que continuam a fazer sentido.

Corpo e matéria

"A nossa proposta é a de partir com a marioneta para outras experiências que não marionetísticas, mas que estabelecem relações entre o corpo e a matéria que, de alguma maneira, podem ser convertidas ou pensadas a partir da marioneta", defende Igor Gandra. No conjunto das propostas encontram-se Mironescópio (18 no Ateneu Comercial e dia 25 no Jardim da Cordoaria em vários horários), criação da Tarumba, a companhia de teatro de marionetas responsável pela organização do Festival de Marionetas de Lisboa, que faz uma paródia sexual e voyeurista da marioneta e dos objectos de cena, mas também O Melhor Mundo Possível (Mosteiro de São Bento da Vitória, dia 23, 20h), performance de Gustavo Sumpta, artista plástico que tem no seu trabalho uma forte relação com os objectos do quotidiano. Incluem-se ainda propostas vindas de Itália, pela companhia Pathosformel (La Timidezza della Ossa, na Rua de França, 24 e 25, às 19h), uma das mais relevantes companhias do recente teatro italiano, reconhecida pela inventividade do seu imaginário, e a peça Globo. Digital. Glossary (Teatro Helena Sá e Costa, 18, 22h), da Rússia, é um conjunto de miniperformances que podem, ou não, constituir-se como um espectáculo.

"São olhares múltiplos e de observação diferentes que nunca deixam de ser acessíveis. O festival é um contexto e um percurso que nós propomos e que as pessoas seguem, umas indo a todos os espectáculos e outras seleccionando." O festival é, e quer ser, acredita, "uma festa".

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