58 portugueses acusados de escravizar em Espanha

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Casa em Navarra, Espanha, para onde era levadas algumas das vítimas Nelson Garrido

Organizados em 13 clãs, angariariam, controlariam e explorariam outros portugueses com dependências ou debilidades mentais.

Uma noite, no albergue, um sem-abrigo falou-lhe num homem "honesto e pagador". José Manuel pediu-lhe o contacto. E a voz, do outro lado da linha telefónica, confirmou precisar de mão-de-obra para "limpeza de vinhas" e "apanha de tomate". Trabalharia oito horas por dia em troca de 600 euros por mês - transporte, alojamento e alimentação incluídos.

O homem que o recolheu na Praça da República, às 10h00 do dia 8 de Janeiro de 2006, não tardará a sentar-se num dos bancos dos réus das Varas Criminais do Porto. O Tribunal de Instrução Criminal mandou para julgamento 58 pessoas acusadas de angariar 65 desempregados, com dependências ou debilidades mentais, e de os forçar a trabalhar em Espanha.

A acusação recai sobre núcleos familiares de pequena dimensão - "13 clãs". Com residência oficial nos municípios de Torre de Moncorvo, Alfândega da Fé, Mirandela, Belmonte, Bragança, Mêda, Vila Flor, Penedono, Murça, Castro Daire, Celorico da Beira, Chaves.

Há anos que os nomes de muitos dos acusados se repetem em registos policiais de um lado e do outro da fronteira. A investigação feita pela Polícia Judiciária do Porto - com a colaboração das autoridades espanholas - recua a 1997. Há quem tenha vivido em cativeiro anos a fio (ver texto ao lado). O grosso, porém, aguentou pouco tempo, como José Manuel.

Naquele dia, Francisco e o filho, Sérgio, apanharam José Manuel e seguiram, numa carrinha vermelha, para Arguedas, na província de Navarra. Pararam junto a um prédio degradado. Lá dentro, estavam outros membros do clã e cinco trabalhadores. José Manuel foi enxotado para a varanda. Era ali que os trabalhadores dormiam, sobre cartões, sob plásticos.

José Manuel adormeceu sem perceber ainda que caíra na teia de um dos 13 grupos que angariavam, controlavam e exploravam compatriotas. O modus operandi parece fotocopiado, mas cada grupo agia por sua conta. O Ministério Público fala em estruturas organizadas, hierarquizadas, disciplinadas. O chefe de cada clã definiria as áreas de intervenção territorial. E teria "na sua dependência directa outros membros da família", que receberiam ordens e prestariam contas.

Havia angariadores-trabalhadores (aliciavam outros trabalhadores mediante contrapartidas). E angariadores-intermediários (recrutavam trabalhadores e transportavam-nos para Espanha, onde assumiam a qualidade de patrões/fornecedores de mão-de-obra às quintas). E eram eles, os angariadores-intermediários, os arrendatários ou proprietários dos imóveis degradados e mal equipados que alojavam os trabalhadores.

As vítimas seriam escolhidas a dedo: portadoras de uma "capacidade de autodeterminação diminuída", de repente colocadas num ambiente estranho, com uma língua diferente, privadas de qualquer contacto familiar ou social, despojadas de documentos, vigiadas, ameaçadas.

Sem papéis nem comida

O líder do "clã de Bragança" terá pedido os documentos a José Manuel na primeira noite - alegou querer evitar que se extraviassem ou que estragassem por estarem ao ar livre. E tê-lo-á despertado de madrugada. Sairiam às 6h30 para uma vinha, situada a uns 30 minutos da casa de barro. Aquele dia e os que se lhe seguiram eram dias de "descarga" - de limpar galhos.

O chefe do grupo deixaria os trabalhadores ali, sob vigilância dos filhos, e só reapareceria às 18h30 para os levar para casa. Parariam entre as 13h30 e as 15h00. Almoçariam conservas de sardinha ou atum. Jantariam quase sempre apenas feijão e grão, amiúde já fora de prazo.

Não podia fugir. O "patrão" fechava a porta à chave. E mantinha-se vigilante - dormia durante o dia. Nunca José Manuel terá tido autorização para sair. Tomava banho uma vez por semana, com água que o "patrão" trazia do rio dentro de um bidão. Defecava e urinava na mata.

Volvidos 15 dias, José Manuel e os companheiros contaram ao encarregado da vinha, de nacionalidade espanhola, o que estava a acontecer. O encarregado falou com o dono. O dono deixou de solicitar serviço ao "Clã de Bragança". E o clã pegou nos homens e abalou para Múrcia.

Avançaram para uma fábrica de transformação de tomate. Dormiriam num acampamento, perto de Lorca, a uns 20 quilómetros da fábrica. Construíram uma barraca com paus e plásticos para dormir. Sem saber como, José Manuel e os outros foram inscritos na Segurança Social.

A PJ percebeu que as mudanças de sítio acontecem amiúde. Os grupos usam as fronteiras regionais para ludibriar as autoridades.

Os trabalhadores confrontaram o "patrão" com a necessidade de receber os salários devidos. Queriam receber os dinheiros e documentos e regressar a Portugal. Ele deu apenas 20 euros a cada um: o resto era para pagar transporte, alojamento, alimentação. José Manuel protestou e ouviu: "Tu só sais daqui com vida se trabalhares dois anos. Não queiras tu levar com o junco!"

O junco era uma espécie de bengala que alguns elementos do clã exibiam. Usá-lo-iam para agredir quem os enfrentava ou tentava escapar. José Manuel terá sido agredido múltiplas vezes. Terá mesmo sido ameaçado com uma arma de fogo. Conseguiu fugir volvidos três meses. Ajudou-o um encarregado da fábrica, de nacionalidade espanhola. Boleia a boleia, a 22 de Abril de 2006, chegou a Portugal.

Noutros grupos, imperaria lógica idêntica. Os casos sucedem-se ao longo do inquérito de 64 volumes. No fim da campanha, "alguns trabalhadores eram obrigados a ficar por ali a trabalhar noutras actividades". A maior parte regressava a Portugal. Alguns fugiam - depois de diversas tentativas. Muitos não apresentam queixa por medo de represálias - alguns desaparecem sem deixar rasto e, com isso, "dificultam ou impedem a acção das autoridades", refere o MP. Os poucos relatos que chegam à barra do tribunal frustram quem se dedica, com afinco, à denúncia "das máfias".

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