Ana Vidigal: "Fui educada para ser uma menina limpinha"

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Ana Vidigal Clara Azevedo

Menina Limpa, Menina Suja é o nome da sua exposição antológica no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. A mostra conta a história de uma menina bem comportada que aprendeu com Mae West que, quando era boa, era boa, quando era má, era muito melhor. A inauguração é a 22 de Julho.

Ana Vidigal vai fazer 50 anos. Pinta há 30. As suas peças têm títulos como Secura de Boca Depois de Arfar, Sempre Gostei de Uma Flechada de Cupido, For All the Girls I Loved Before. Os assuntos do coração podem ser, são quase sempre, os seus assuntos. Interessam-lhe os “estragos emocionais” quando fala de um acontecimento que é eminentemente político — por exemplo, a guerra colonial.

Faz parte do blogue Jugular. É feminista. “Posta” coisas que quer dizer, mais do que tudo, em imagens. Mas a política e a arte são campos que não gosta de misturar. Gosta de artistas como Louise Bourgeois ou Sophie Calle. Gosta de poesia. Trabalha sobre sedimentos, despojos, memórias, cartas, fotografias, a vida. Pinta quem é como outros escrevem quem são. Pinta sobre os vestígios de uma vida obsessivamente guardada, reconfigurada. O seu trabalho artístico, de certa forma, é um abrir de caixas, caixas, caixas. Faz um “trabalho paralelo” mais experimental que durante muito tempo não expôs na sua galeria de sempre, a 111. Muito disso , está na exposição da Gulbenkian, a inaugurar-se a 22 de Julho. A entrevista aconteceu em casa. Tudo acontece em casa. Um mundo, uma infância, uma memória palpável confluem num único espaço. A casa tem vista para o rio, o bairro faz parte da geografia da família há mais de 20 anos. O atelier e a casa estão construídos em círculo; mais do que comunicantes, parecem umbilicais. Como na obra de Ana Vidigal, aliás. Um alimenta-se do outro. Existe por causa do outro. Um é sintoma do outro. É filha de uma família conservadora, de homens e mulheres licenciados há pelos menos duas gerações. Há na casa vestígios desse conforto e “finesse”. Nas louças antigas, numa cómoda de extremo bom gosto. O pai é arquitecto, a mãe é mãe. Ana é pintora e nunca lhe passou pela cabeça ser mãe. Isso seria outra vida, outra pessoa.

Excerto da entrevista a Ana VidigalFoi educada para ser uma menina limpa que podia sujar-se de vez em quando?

Hum. Fui educada para ser uma menina limpinha. Tudo se transforma em 1974. A minha mãe, que foi educada para casar e ter filhos, pensou que o quadro anterior ao 25 de Abril se poderia manter; eu percebi rapidamente que a revolução me iria permitir, um dia que fosse autónoma, fazer aquilo que muito bem entendesse.

O que é ser limpinha?

A menina limpa corresponde ao modelo de uma família conservadora. Uma família de mulheres que estudaram, mas não trabalharam. Todas as minhas amigas de infância e adolescência casaram e tiveram filhos. Sou a única que exerço uma profissão que não me dá disponibilidade para mais nada. Sou uma menina de colégio de freiras. Andei até aos 15 anos, até 1976, nas Doroteias.

O 25 de Abril afectou a vida da família? Houve uma mudança radical, no sentido de a família achar que algumas das suas prerrogativas deixavam de existir?

Não. O meu pai não tinha qualquer actividade política, nem à esquerda nem à direita. Tinha sido chamado para fazer a tropa pela segunda vez. Isso foi a primeira desestabilização na família. Ele tinha 30 e poucos anos quando teve de ir para a Guiné e nós ficámos cá sozinhos com a nossa mãe. Quando foi o 25 de Abril, a mãe respirou de alívio: os meus irmãos já não seriam mobilizados. Era um sentimento muito presente nas famílias portuguesas: ou as famílias se desfaziam porque os homens fugiam para não ir à tropa; ou se desfaziam porque iam para a guerra e morriam.

Há uma peça que evoca esse período. É uma cama feita com as cartas que os seus pais trocaram. Chama-se Penélope.

Fiz essa peça para a exposição Um Oceano Inteiro para Nadar. Eu queria pegar no assunto da guerra colonial. Sempre me fez impressão que não trabalhássemos isso (nomeadamente nas artes plásticas). Os americanos trataram a guerra do Vietname ainda ela estava a decorrer. Duvido de que haja alguém da minha geração que não tenha tido um pai, um tio, um irmão em contacto com a guerra colonial. Há uma peça que sempre me impressionou muito e que foi exposta em 1973 na Sociedade Nacional de Belas- Artes (nem sei como é que aquilo passou na censura); uma peça da Clara Menéres, Jaz Morto e Arrefece (que é um verso do poema do Pessoa O Menino de Sua Mãe). É um soldado morto, hiper-realista, uma crítica fortíssima à guerra colonial. Mas não me interessou tomar posições políticas. Eu tinha seis anos, sabia lá se era contra ou a favor! Posso ter a minha posição agora. O que eu queria da peça é que ela me relacionasse com essa altura.

E se pensa nessa altura, pensa em quê?

A força da guerra tem a seguinte expressão: a ausência do meu pai, a presença constante em cartas. Não falei com os meus pais sobre isto, nem vou falar; não sei se combinaram quantas vezes se escreveriam, mas sei do nervoso da minha mãe quando estava para chegar o aerograma (mais frequente do que as cartas).

Temeu por ele?

Mesmo miúda, percebi que podia não voltar. Tivesse a noção de que se morria na guerra. Ninguém me escondeu isso. Os nossos desenhos estavam cheios de bandeiras portuguesas, carros de combate. Os meus irmãos e eu sempre desenhámos muito, sempre tivemos acesso a lápis, papel. Fazíamos desenhos para mandar para o nosso pai.

É curioso que desenhassem bandeiras e não a casa, a família. Não lhe devolviam nos desenhos o que era o vosso quotidiano.

Desenhávamos coisas directamente relacionadas com a guerra. Mas não sei se a guerra era para nós um fantasma. Se calhar gostávamos imenso que o nosso pai participasse naquela ideia heróica que tínhamos da guerra. Os pais iam para a guerra defender a pPátria — era isso que nos era incutido. O que abordei, quando falei nas minhas peças da guerra colonial, foram os estragos emocionais.

Voltando à peça: leu as cartas? Por que é que decidiu tratar esse tema a partir daquelas cartas?

Nunca li as cartas. Gosto muito desse tipo de materiais. As cartas fascinam-me. Porque têm uma parte exterior e uma parte interior.

Nesse sentido, são caixas. Elemento nuclear do seu trabalho.

Sim, as cartas são caixas. Nunca li aquelas cartas por uma questão de respeito e pudor. A minha mãe deu-me as cartas, mas sabia que nunca iria usá-las de modo a expor a intimidade dela com o meu pai. Já exponho, de certa maneira, quando mostro que aquele casal manteve aquela correspondência tão assídua. Interessa-me saber que dentro daqueles envelopes está uma vida. Mas é uma coisa que não se pode violar.

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