À face da Terra já não há nada para descobrir. É uma tristeza

Foram os seus estudos sobre os índios da Amazónia que nos fizeram olhar para estes povos de outra maneira. Claude Lévi-Strauss, o antropólogo que na América mudou de nome por causa dos jeans, deu outro sentido às sociedades primitivas. Uma entrevista com o autor de “Tristes Trópicos” e as fotografias que fez durante as suas viagens.

Odeia viagens e exploradores. No entanto, é por um relato, o da partida, que começa um dos seus livros mais famosos — “Tristes Trópicos”. É aí que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, um dos grandes pensadores do século XX, conta a sua viagem à Amazónia, quinze anos depois de ter chegado a uma das últimas fronteiras a explorar na Terra. Estava em 1935, quando começa a estudar as sociedades primitivas — as tribos índias da Amazónia.

Hoje, com 90 anos, este homem que influenciou de maneira determinante o desenvolvimento das ciências sociais neste século, não quer dizer nada de especial sobre o mundo. Porque para além de ser totalmente céptico, quando começou a trabalhar havia dois mil milhões de pessoas. “Esse número triplicou, o que dá qualquer coisa como seis mil milhões de pessoas. É um mundo que não tem qualquer semelhança, ou relação, com o que conheci quando era jovem.” Mas Claude Lévi-Strauss, que na América mudou de nome por causa dos jeans, foi sempre assim, a sua opinião era apenas mais uma opinião.

“O mundo começou sem o homem e acabará sem ele”, escreve quase no fim de “Tristes Trópicos”, certamente o seu livro mais lido. Na altura, tinha 47 anos, hoje celebram-se os seus 90 anos. Como é que vê o mundo?

Bom, é o tipo de perguntas a que me recuso responder.


Porquê?

Recuso-me a tecer quaisquer considerações porque esse não é o meu trabalho. O que faz com que eu não tenha, pelo menos é a minha opinião, nenhuma autoridade para fazer qualquer espécie de julgamentos sobre o estado mundo.


Não sou apenas eu que não tenho autoridade para falar sobre o estado do mundo. É um assunto de tal forma complexo, que não vejo muito bem quem é que possa ter alguma autoridade para falar sobre ele. Não sabemos nada, essa é a verdade!


Podemos ter preferências, esperanças ou irritações. Mas, repito, não podemos fazer qualquer espécie de juízo acabado.


Bom, se quiser, sobre essa matéria sou um pessimista, ou antes, um céptico total. Não vejo o que possa dizer!


Apesar de odiar as viagens, é como abre “Tristes Trópicos”...

... é verdade, mas há muito tempo — já nem me lembro quando foi a última vez [risos] — que não viajo.


Se insiste dou uma resposta simples, mas que muito provavelmente não o satisfará. Quando comecei a trabalhar, a ensinar Filosofia, quase há 70 anos, a população mundial andava à volta de dois mil milhões de pessoas; no fim da minha existência esse número triplicou, o que dá qualquer coisa como seis mil milhões de pessoas.


Para mim, isso representa qualquer coisa de catastrófico. Absolutamente inimaginável! É um mundo que não tem qualquer semelhança, ou relação, com o mundo que conheci quando era jovem. Como é que quer me pronuncie sobre o seu estado?


A sua primeira viagem é, em 1935, ao Brasil, S. Paulo. Chegou a aprender português?

No Brasil toda a gente falava francês. Dava os meus cursos, na Universidade de S. Paulo, em francês. Claro, que aprendi a falar português, mas o português do interior, dos camponeses de Mato Grosso. Nunca fui a Portugal. Mas tenho pena.


Apesar de falar português, já confessou que quando escreveu “Tristes Trópicos” grafou as palavras portuguesas como elas lhe soavam ao ouvido. O livro estava cheio de gralhas...

Completamente, essa primeira edição, já o disse uma vez, era um monstro [risos].


Em 2000, comemora-se a descoberta do Brasil, por Pedro Álvares Cabral. Acha que ainda se pode descobrir algo no mundo?

[Grande silêncio.] Descobertas científicas sim. Mas à face da terra já não há nada para descobrir.


Isso não é preocupante?

Não é preocupante. É uma tristeza!


Neste momento está a escrever algum livro?

Já não escrevo mais livros, já não tenho vontade. É algo que demora muito tempo. Digo com os meus botões: para é que vais escrever um livro se não o vais acabar? [risos] De vez em quando, escrevo alguns artigos. O último apareceu no jornal italiano “La Repubblica”, sobre a administração da prova na análise dos mitos. Não diz muita coisa, pois não? [gargalhada]


Acha que pode falar-se de mitos na sociedade contemporânea?

O sentido que os povos sem escrita atribuíam ao mito é o que nós atribuímos aos diferentes modelos de explicações científicas: quando temos problemas, vamos ter com os físicos, com os químicos ou com os biólogos. Mas acho que não podemos encontrar em qualquer domínio da nossa sociedade algum equivalente do que pode ser o pensamento mítico.


O papel que a História representa para nós, quer dizer, a maneira como tentamos compreender o presente e prever o futuro — que é também a forma de reconstruirmos o nosso passado — é, talvez, o equivalente do que o pensamento mítico terá sido para os povos que não tiveram escrita.

Acha que ainda hoje — com as teses de alguns autores pós-modernos sobre o fim da História — essa ideia tem algum sentido?

Em primeiro lugar, gostaria que me explicassem o que é isso do pós-modernismo! Porque sentimos que, quando se fala de pós-modernismo, diz-se que não é moderno, mas não se diz o que é. O que é muito revelador porque, com efeito, representa um conjunto de ideias de tal modo confusas que somos completamente incapazes de ter uma linha de definição.


Abraçou o socialismo ainda adolescente, chegou mesmo a dizer que gostaria de ter sido o “filósofo do Partido Socialista”. O facto de vivermos uma sensação de vazio sem qualquer “ismo” ou ideologia não o incomoda?

Claro, claro! Foi por isso que quando começámos a falar me recusei a responder! [risos] E quanto à política, quando fui para o Brasil, abandonei a actividade política. Até hoje.


Porquê?

Por um lado, o meu cepticismo sobrepôs-se. Por outro, o meu trabalho de etnólogo levou-me a ver as coisas humanas de muito longe. O que se passa à escala de uma vida ou de uma geração não tem muita importância.


Sou totalmente céptico. As pessoas têm que encontrar os seus caminhos. O meu papel não é de propor qualquer um.


Sim, mas no último volume de “Mitologias” escreveu que, se fossem suprimidos dez ou vinte séculos de história, isso não afectaria o conhecimento da natureza humana. A única perda insubstituível seria a das obras de arte que esses séculos viram nascer. Qual é a obra que, na sua opinião, podia resumir o nosso século?

Não há uma obra! Há dezenas, centenas, milhares. Depende do momento, depende da hora do dia.


Aos 90 anos, como é que vê a si próprio, qual é o retrato que faz da sua vida? Vê-se como um sábio?

Ah não! Ao longo da minha existência, fiz os possíveis para me divertir ou, se quiser, para não me aborrecer [risos]. Foi por isso que trabalhei, porque se não o fizesse aborrecer-me-ia imenso. Escrevi apenas para passar o tempo. E não dou qualquer importância a isso.


Os que o leram dão. Por que razão se apaga tanto?

Se calhar é isso que é saber ser sábio! [risos]. Os outros deram-me uma certa importância num certo momento, sobretudo os que fomos da mesma geração, nos anos 50, 60, 70. Hoje não se interessam pelo que faço ou fiz. E acho bem que assim seja.


O senhor é um dos últimos sobreviventes de toda uma geração de pensadores e escritores — Braudel, Lucien Febvre, Sartre, Merleau-Ponty, Raymond Aron, Dumézil, Breton, Max Ernst, Marcel Duchamp, Lacan, Alexandre Koyré, Foucault, Jakobson, a lista é interminável. Tem consciência da referência intelectual que representa?

Mas eu não sou uma referência. O que se passa é que vivi mais, sou mais velho. É tudo!


A grande cultura francesa, que todos aqueles nomes representavam, está em declínio. Concorda?

Certamente. E aflige-me imenso. Mas sou totalmente incapaz de dizer se é algo de durável ou se é simplesmente uma flutuação. Quem sabe se daqui a 10, 50 anos o caso muda de figura? Ninguém sabe, ou melhor, eu não sei.


O facto de os EUA serem actualmente a potência toda-poderosa preocupa-o?

Em primeiro lugar: nunca me esquecerei do papel que os EUA tiveram na minha existência. Salvaram-me a vida ao deixarem-me sair da França, em 1940. Em segundo lugar, foi nos EUA que comecei a escrever e que conheci todo um ambiente intelectual que foi capital para a minha vida. Logo, não tenho medo nenhum dos EUA.


O poder dos EUA pode durar ou não. Não sei. O mundo muda. E não estarei já cá muito tempo para ver. Espero calmamente a morte.

Imagine que podia começar tudo de novo. Repetia tudo o que fez ao longo da sua vida?

Nem por sombras. Gostaria de fazer coisas completamente diferentes do que fiz.


O quê?

Gostaria imenso de ser compositor e maestro. Sobre isso, não tenho quaisquer dúvidas!


Não gosta muito do conceito, da palavra, método.

De facto, não. Mas se quiser pode utilizar a palavra.


O seu “método” de trabalho não é o de colar coisas como fizeram os surrealistas?

Não se pode generalizar a tudo quanto fiz. Disse isso ao comparar as colagens de Max Ernst e os trabalhos que fiz sobre os mitos. O que afirmei? Bom, também eu recortei velhas imagens e depois procurei colá-las umas com as outras, para fazer aparecer relações que passavam até então despercebidas. Mas é uma ideia a que não dou, mais uma vez, uma grande importância. É uma espécie de “boutade”.


Quando lhe dizem que é o “papa do estruturalismo” como é que reage?

Digo que isso não quer dizer nada. Até porque quem inventou o estruturalismo não fui eu. O estruturalismo é uma coisa mais antiga do que se possa pensar. Se quiser falar de um “papa do estruturalismo”, ele viveu no século XVIII: foi Goethe. No século XIX, foi Wilhelm von Humboldt [filósofo e linguista alemão, 1767-1835], depois vem Saussure e Trubetskoi [linguista russo 1890-1938] e, claro, Roman Jakobson.


Não inventei nada. Sou alguém que faz parte de uma corrente de pensadores — de um afluente de um grande rio — que remonta, no mínimo, a Dürer.

Máscaras, crocodilos e Breton

A abarrotar de livros e discos por tudo quanto é sítio, a casa de Lévi-Strauss é um pequeno museu. Há objectos, de todos os géneros e feitios, espalhados por cima das mesas, das cadeiras, da sua secretária de trabalho. Ao fundo avista-se, por uma nesga da janela, o Sena.

Tem uma biblioteca imensa?

Até já tive que pôr muitos livros na garagem. Não leve a mal toda esta desarrumação.


Ri-se. Claude Lévi-Strauss tem um olhar a um tempo inquieto e meigo. Está a ler vários livros ao mesmo tempo, como a biografia de Balzac. Mas o seu autor preferido é Proust. “‘À Procura do Tempo Perdido’ continua a ser o meu livro de cabeceira”, confessa. “Mas gosto muito de Chateaubriand, Balzac e Rousseau.” Quando esteve no Brasil, leu Eça de Queirós.

Enquanto fala, as suas longas e lindíssimas mãos parecem acompanhar o pensamento. Treme um pouco e anda com alguma dificuldade. “Hoje, estou com um pouco de febre, desculpe.”

Do outro lado da casa, há um rumor de música. “Tenho uma lista muito banal de compositores preferidos”, confessa por entre um sorriso, Beethoven, Mozart, Wagner, Stravinski. “Depois, há outros, ao lado, a que sou menos sensível: Schubert, Schumann, Brahms, Schönberg — não é a minha família.”

O seu pai era pintor. “Gosto muito de Poussin, e sobretudo os grandes flamengos: Van Eyck, Van der Weyden. Picasso é um grande génio, tem quadros admiráveis, mas, enfim, não é com os olhos postos neles que gostaria de viver...” Lévi-Strauss vive, antes, com uma grande pintura do Tibete, a peça que introduziu o surrealista André Breton na arte tibetana. Mas há também, entre outras coisas, máscaras, todo o tipo de adornos, crocodilos.

Qual é o objecto que tem em sua casa de que gosta mais?

Só um? É impossível, é como estarmos a falar de um pintor, de um compositor ou de um escritor [risos].


Não é isso. A pergunta é: qual é o objecto a que se sente mais ligado?

Depende de tanta coisa. Dos dias, das horas, daquilo que estamos a sentir em cada momento. Mas está bem, aceito o jogo: escolheria este aqui [apontando para uma escultura que está por detrás da sua secretária de trabalho]. É uma escultura da costa pacífica do Canadá, da Colômbia Britânica, dos índios dessa região onde estive entre 1973 e 1974. Escrevi sobre eles “A Via das Máscaras”, que fala sobre esta arte. Para mim, é a arte mais importante de toda a história da humanidade.


Porquê?

É o mesmo que perguntar porque é a arte gótica é tão importante! É uma arte que me diz muito. O que posso dizer mais?


E aquele crocodilo?

Bem não é propriamente um crocodilo [risos]. É um alaúde da Birmânia. Tem três cordas esticadas no ventre e tem a forma de um crocodilo porque na mitologia chinesa é o crocodilo que é o inventor da música. É muito bonito, não é?


Nas expedições que fez deve ter dado de caras com muitos crocodilos verdadeiros. Nunca teve medo?

Só mais tarde. Na hora dos perigos não.


Porquê? Diz-se que era muito “naïf”. E hoje?

Espero bem que sim e acho que é bastante útil continuar “naïf”.


E aquela grande pintura que está por cima do alaúde, que aparece em todas as entrevistas que já deu?

É uma pintura tibetana, mas nunca fui ao Tibete. Encontrei-o num antiquário em Paris...


... aliás, quando era jovem gastava uma boa parte do seu pouco dinheiro nos antiquários...

... e depois ia com os meus amigos surrealistas. Curiosamente, acho que é a primeira vez que falo disso. A minha amizade com Breton está muito ligada a esta pintura. De facto, ele nunca se interessou pela arte tibetana. Foi quando a comprei — por um preço absolutamente irrisório porque era muito grande e ninguém a queria [risos] — que Breton, depois de a ver, se começou a interessar pela arte tibetana. Alguns dias depois, dei com ele a comprar os primeiros objectos tibetanos que, julgo, ainda existem na sua casa.


Entrevista publicada a 11 de Abril de 1999
Sugerir correcção
Comentar