The First Days of Spring

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Os humanos, depois da relação amorosa que correu mal, ou ficam com o cérebro torcido ou é bom que saibam escrever, pintar ou tocar. É o caso de Charlie Fink, em "The First Days of Spring". Isto vem na melhor poesia: desde que nascemos até que morremos é sempre a levar porrada. Larkin dizia: "They fuck you up/ your mum and dad". Podia esperar-se que depois do simpático começo que os nossos pais nos proporcionam, transmitindo maus genes, preconceitos e neuroses, tudo melhorasse.

 Não melhora. Porque depois vêm as mulheres (ou os homens, para quem gosta). E o que a mamã não conseguiu arruinar, há sempre uma mulher que o consegue de vez: é ela que "fuck you up" de vez. A biologia, a teoria dos jogos e a Bíblia explicam isto: em sociedade e em relações individuais funcionamos maioritariamente em regime "tit for tat". Isto é: tu fazes-me o bem, logo eu faço-te o bem a ti. O sistema que, em comunidades alargadas, é tão complexo que permite alguma estabilidade, tem a desvantagem de nas relações individuais transformar-se em "olho por olho dente por dente": quanto mais parecer que eu te faço o bem mais te posso cobrar; por mais que eu te diga que vou dar-te o correspondente bem já estou de olho ali no Zezinho ou na Zezinha. E assim o mundo dedica desde o seu início mais páginas à guerra dos sexos que às dos Homens. O pequeno sistema de contribuições atrás mencionado é de simples descrição mas lenta aprendizagem. Enquanto são novos, os humanos esforçam-se por perceber o que correu mal na sua relação amorosa, culpam-se, imaginam vinganças, pensam que a vida acabou, tornam-se submissos, desorientam-se, copulam em demasia, perdem o gosto à cópula, etc. Uma vertente psicologista diz que o pior que lhes pode acontecer é não serem capazes de raciocinar sobre o assunto. A ser assim, das duas uma: ou ficam com o cérebro torcido ou (hipótese nossa) ou é bom que saibam escrever, pintar ou tocar um instrumento. É o caso de Charlie Fink, que depois de levar com os pés da namorada, Laura Marling, resolveu traduzir as complicadíssimas equações acima explanadas teoricamente em música. "The First Days of Spring" é uma espécie de transcrição para pauta das maleitas patentes nas entrelinhas de Darwin: tudo o que de mau pode correr num "tête-a-tête" reprodutivo (vulgo jogo amoroso) é aqui traduzido para canções clássicas, invariavelmente sinfónicas, acompanhadas por ocasionais metais e sopros, aqui e ali devedoras da sagrada escrita da Tin Pan Alley. É um disco belíssimo, uma espécie de cruzamento entre Micah P Hinson e os Anywhen, em que às lentas ascensões de cordas destes últimos se sucedem explosões dignas do primeiro. Os violinos são quase omnipresentes: surgem logo na primeira faixa, homónima ao disco, terminando a canção numa vertigem de glissandos. Trespassam "My broken heart". Dobram o dedilhado de guitarra eléctrica e voz funda (à Micah P.) de "Stranger", afundando-as em miséria, enquanto a bateria toma um irónico padrão de marcha. Guitarra, voz cava, cordas: esta é a matriz. Depois há as pequenas variações, uma guitarra slide sob fundo folk em "My door is always open", ou a loucura de "Love of an orchestra", que começa com um coro a cantar "If you gotta run/ run from hope", para depois se transformar num cruzamento de BSO dos anos 40 com Queen dos 80s. (Magnífica canção.) Na transformação de simplicidade em grandiosidade de "Blue Skies" os Noah and The Whale quase se aproximam dos The National. Falta-lhes a verve, é certo, o que compensam com as explosões maníacas de quem está lamentavelmente "fucked up". E no entanto às vezes saem-se com pérolas simples, Larkin-eanas, como "I do believe that everyone has one chance/ to fuck up their lives". Que Deus, a biologia ou as teorias dos jogos ajudem Charlie Fink - mas só depois do moço fazer, vá lá, mais um disco assim. Ou dois.

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