Como eu fiquei a saber que o meu pai caçava tesouros pilhados pelos nazis

A história deu um filme. Mas Susan Fisher Sullam viveu quase toda a sua vida sem conhecer o papel que o pai desempenhou nas buscas aos tesouros que os nazis roubaram.

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Há nove anos, recebi uma chamada de um historiador respeitado que me informou que o meu pai desempenhara um papel importante numa das maiores caças ao tesouro da História. Disse-me que o meu pai tinha estado envolvido na recuperação de milhares de milhões de dólares em ouro, prata, divisas estrangeiras, peças de arte e bens das vítimas do Holocausto roubados pelos nazis e escondidos nos últimos dias da II Guerra Mundial.

O historiador, William R. Wells II, afirmou que deu de caras com o obituário do meu pai no The New York Times enquanto fazia uma pesquisa online e perguntou se eu tinha algum dos seus arquivos.

Eu pouco sabia das experiências de guerra do meu pai, mas tinha realmente alguns arquivos do seu escritório de advocacia, que tinha transferido para a minha cave em Baltimore quando ele morreu, em 1997. Achei tudo isso muito interessante, mas disse a Wells que andava demasiado ocupada com um trabalho exigente para me pôr a olhar para o material. Anotei os seus contactos e garanti-lhe que um dia encontraria tempo para o fazer.

Esqueci-me totalmente do assunto até Março de 2013, quando Wells voltou a contactar-me. Desta vez, disse-me que George Clooney estava a trabalhar num filme intitulado The Monuments Men, que se centrava na recuperação de obras de arte roubadas pelos nazis. Wells, que é uma autoridade na história da Guarda Costeira dos EUA, tinha apenas um pedido simples: “Faça só o pedido para ter uma cópia da folha de serviço do seu pai na Guarda Costeira.” A menção a George Clooney certamente que me chamou a atenção. Apresentei o pedido.

Foi uma longa espera. Mas finalmente, nesse mês de Junho, uma jovem tenente ligou a dizer que não havia registos sobre o meu pai. Perguntou-me se eu tinha o seu número de identificação de serviço. Também mencionou que, às vezes, quando as famílias apresentam um pedido de acesso às folhas de serviço, descobrem que o seu familiar nunca esteve realmente no Exército.

Agora eu estava alarmada.

O meu pai, Joel Fisher, tinha sido um advogado muito respeitado em Washington. No Verão depois da sua morte, o meu marido e eu esvaziámos um armazém na Virgínia com os arquivos do seu escritório. Levámos apenas o que cabia na minha carrinha e depositámo-lo na cave, onde permaneceu imperturbável nos 15 anos seguintes.

Depois do telefonema da tenente, peguei imediatamente numa lanterna e fui finalmente à cave fazer a pesquisa. Para além de descobrir que o nome de registo de nascimento do meu pai era Joseph — e não Joel —, encontrei centenas de páginas de ficheiros secretos e documentos classificados e recortes de jornais a dar conta do enorme tesouro roubado nos países invadidos pelos nazis. Os documentos eram praticamente um diário da caça ao material roubado realizada no último mês da guerra. E, apesar de ter levado meses, finalmente desvendei o papel que o meu pai desempenhou naquele que foi o seu feito mais notável.

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Susan Fisher Sullam, na cave da sua casa, em Baltimore

Em 1942, o meu pai era um jovem advogado que trabalhava no Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Tentou alistar-se no Exército, mas foi rejeitado por ver mal e ter o pé chato. Nesse ano, foi aceite pela Guarda Costeira e enviado para as ilhas Aleutas [no prolongamento do Alasca] para uma curta mobilização. Devido à sua experiência no Tesouro, foi enviado para o Quartel-General Supremo da Força Expedicionária Aliada (a SHAEF, comandada por Dwight Eisenhower), em Londres.

Na SHAEF, o meu pai foi promovido a tenente e enviado para o G-5, a Divisão Financeira, onde foi chefe das Divisas Estrangeiras e da Secção de Controlo de Propriedade.

Apesar de eu saber que o meu pai tinha sido mobilizado para a equipa de Eisenhower, ele nunca falou muito sobre o assunto. Contou-me uma vez, era eu criança, que Ike [alcunha do general] costumava chamar-lhe “Miúdo Judeu” e que nunca votara nele.

A única menção para além dessa chegou pouco depois de o filme Patton, com George C. Scott, se ter estreado, em 1970. Depois de ver o filme, contou-me que uma vez tinha estado numa missão destinada a fazer Ike chegar às “minas de sal” antes dos soviéticos. A equipa de soldados do meu pai teve de atravessar as linhas do Terceiro Exército do general George Patton, e acabaram por ser detidos e chateados pelo general, famoso pelo seu mau feitio. Segundo o meu pai, Patton acabou por lhes dizer: “Que se dane, vou deixar-vos seguir só porque vocês são os ‘rapazes do Ike’.” Não houve qualquer explicação sobre o que eram as “minas de sal” e porque é que eles tinham de lá ir.

À medida que cresci, durante a década de 1960, pouco me interessava o que o meu pai ou a minha mãe — que foi tenente no WAVES [divisão feminina da Marinha criada durante o conflito] — tinham feito durante a guerra. Tudo isso mudou quando encontrei os documentos relatando o papel que o meu pai teve na caça ao tesouro.

Ouro no meio do sal

No início de 1945, quando já era evidente que a Alemanha ia cair, os nazis andavam atarefados a esconder lingotes e moedas de ouro, barras de prata, divisas estrangeiras, obras de arte e outros bens das vítimas do Holocausto. Os nazis fizeram sair de Berlim uma grande parte do tesouro — para longe do avanço das tropas aliadas —, conduzindo-o para uma rede de minas de sal na região de Merkers e para as sucursais do Reichsbank no Leste e Sul da Alemanha.

Merkers fica 128 quilómetros a nordeste de Frankfurt. Segundo os arquivos do meu pai, o Exército americano estava a correr contra o tempo para localizar o tesouro antes que os nazis o transportassem para a Suíça, ou que os soviéticos, que se movimentavam para oeste, lhe deitassem a mão.

Em Fevereiro desse ano, o Presidente americano, Franklin D. Roosevelt, o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e o líder soviético, Jose Estaline, assinaram o Acordo de Ialta, reorganizando a Europa do pós-guerra e decidindo que países controlariam os territórios que tinham sido ocupados pelos nazis. O acordo veio aumentar a pressão nas buscas do tesouro escondido porque colocava a região de Merkers sob o controlo soviético depois da guerra.

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O comandante Joel Fisher, à direita, em Londres

No final de Março, o Terceiro Exército de Patton atravessou o Reno e começou a varrer o coração da Alemanha. A 4 de Abril, a vila mineira de Merkers caiu. Perto dali ficava Ohrdruf, um campo de trabalho que fazia parte da rede de campos de concentração de Buchenwald. (Ohrdruf foi o primeiro campo de concentração a ser libertado pelos soldados americanos e foi o campo onde Eisenhower levou a imprensa internacional para que os jornalistas pudessem testemunhar as atrocidades nazis.)

Na noite de 6 de Abril, tropas americanas abordaram duas francesas deslocadas, uma das quais estava grávida, para as informar que vigorava o recolher obrigatório. As mulheres procuravam uma parteira e os soldados decidiram levá-las à cidade para que encontrassem uma. Passaram pela mina Kaiseroda e elas mencionaram que os nazis tinham escondido peças valiosas na mina, a 700 metros de profundidade, e que os trabalhadores escravizados tinham levado 72 horas a decarregá-las.

O corpo de contra-informação do Exército tinha ouvido histórias de transferências recentes do ouro do Reichsbank para minas de potássio na região de Merkers. O Terceiro Exército rapidamente mobilizou soldados para protegerem as entradas das minas de Merkers, Kaiseroda, Leimbach, Springen e Dietlas.

A 8 de Abril, soldados americanos e membros da Divisão Financeira da SHAEF entraram na mina de Merkers e encontraram aquela que mais tarde seria classificada como Sala Nr.8, uma sala de 22 por 45 metros forrada a tijolos, com mais de sete mil sacos e caixotes empilhados pela altura do joelho. Outras zonas tinham também sacos e caixotes cheios de ouro, prata, moedas, obras de arte e bens pessoais de vítimas do Holocausto. No meio dos tesouros, estavam as placas usadas pelo Reichsbank para imprimir os reichmarks, fundamentais para financiar o esforço de guerra da Alemanha.

Quatro dias depois, os generais Eisenhower, Patton e Omar Bradley deram uma volta por Merkers com a imprensa. Mas o dia que tinha começado com uma boa promessa não acabou bem. À noite, enquanto os generais jantavam, receberam a notícia de que o Presidente Roosevelt morrera em Warm Springs (no estado americano da Georgia).

Nos dias que se seguiram, o coronel Bernard Bernstein, vice-chefe da Divisão Financeira SHAEF e comandante do meu pai, recebeu ordens para ficar encarregue de recuperar o tesouro. Bernstein chamou os principais membros da sua equipa, incluindo o meu pai, para que fossem imediatamente para Merkers.

Numa entrevista ao Washington Post a seguir à guerra, o meu pai descreveu a primeira vez que entrou na mina de sal de Merkers.

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O tenente Daniel Kern e o conservador Karl Sieber observam A Adoração do Cordeiro Místico, de Jan van Eyck, salva pelos homens dos monumentos

“A primeira coisa com que fomos recebidos foi com caixas repletas de alianças de casamento, implantes de dentes de ouro e molduras em ouro e prata. Os donos, informaram-nos guardas alemães, tinham morrido. Ali, no meio das placas de sal, estavam uns caixotes de madeira. Agarrei numa coisa afiada e abri um deles, e ali estavam aqueles quadros lindos.”

A descoberta fez activar imediatamente o plano para localizar e capturar o que restava dos bens alemães. Informações dos serviços secretos indicavam que os nazis estavam a tentar transferir o ouro, prata, moedas estrangeiras e obras de arte para conseguirem continuar a exercer influência depois da guerra. Formaram-se equipas G-5 para entrar nas cidades capturadas pelos aliados e localizar os valores, depois a unidade militar mais próxima ficava a guardá-los.

Segundo os documentos, o meu pai recebeu a tarefa de inventariar todas as minas da região e interrogar os responsáveis do Reichsbank na esperança de encontrar mais valores. A maior parte do seu tempo foi passada a tentar localizar os tesouros que tinham sido transferidos das sucursais do Reichsbank.

Durante semanas, o meu pai liderou uma equipa de 75 homens chamada Task Force Fisher. A equipa seguia os soldados americanos que combatiam para entrar no Centro da Alemanha, seguindo ao mesmo tempo os movimentos do ouro e divisas pelas cidades de Gera Zwickau, Aue, Leipzig, Magdeburg, Wurzburg, Halle e Hof. Alguns memorandos e registos de comunicações detalham a investigação desta equipa especial.

O meu pai descreveu a viagem para Plauen a 26 de Abril com o fim de interrogar responsáveis do Reichsbank. Eles admitiram que havia muitos sacos de ouro no cofre, mas que era impossível removê-los de lá porque a chave estava no bolso de um funcionário do banco que tinha ficado soterrado nos escombros de um bombardeamento.

O meu pai foi buscar uma unidade de engenheiros de combate para abrir o cofre com explosivos. Num artigo no New York Times assinado por Leonard Lyon a partir de Frankfurt, o meu pai conta como um dos responsáveis do Reichsbank ria para dentro e dizia: “Não vão ser capazes. As paredes são demasiado grossas.” A carga de dinamite foi activada e o cofre explodiu. Um soldado virou-se para o responsável do banco e disse: “Puf.”

Lá dentro estavam 35 sacos de moedas de ouro, que pesavam cerca de uma tonelada e que tinham sido depositadas pelo chefe das SS, Heinrich Himmler, em Abril de 1944. O Reichsbank de Plauen tinha ainda 17 sacos de dólares americanos em ouro, um milhão de francos suíços em ouro, 151.560 coroas norueguesas em ouro, 22 sacos de moedas alemãs em prata e 98.450 barras de ouro holandês.

A busca dos bens continuou. No Reichsbank de Magdeburgo, foram recuperadas 6074 barras de prata e 536 caixas de prata, o que representava o total das reservas de prata da Hungria. Em Nuremberga, a Task Force Fisher descobriu que o director do banco queimara 750 milhões de francos franceses e foram descobertas 82 barras de ouro no Reichsbank de Eschwege.

Um memorando com os detalhes da caça ao tesouro roubado pelos nazis conduzida pelas várias equipas G-5 refere que, desde a descoberta da mina de Merkers no início de Abril até 1 de Maio, o meu pai e a sua equipa percorreram 3 mil quilómetros e foram responsáveis pela recuperação de 6,65 toneladas de ouro e 9 toneladas de prata.

Numa entrevista de Agosto de 1945 ao New York Times, o meu pai referiu a falta de cooperação dos alemães. Contou como eles tentavam sistematicamente esconder a sua pilhagem, “o que resultava em que só o ouro estava escondido nos mais variados esconderijos... em gaiolas de galinhas em Coburg, em caixotes do lixo... em tocas de árvores”.

Numa entrevista à Coast Guard Magazine, em Outubro de 1945, o meu pai explicava que, apesar de os alemães falarem com ele com boa vontade, “não diziam a verdade. Tentavam desesperadamente desviar-nos do caminho com mentiras e distorções, mas acabámos por ter pistas suficientes para continuarmos as nossas buscas”.

Descreveu também uma experiência aterrorizadora. Ele e os seus homens estavam a explorar a cave de um dos Reichsbank quando ouviram uma explosão. De acordo com o meu pai, correram “para o nível do solo para descobrir... que o edifício do banco estava bem no centro de um combate mas que todos os soldados americanos se tinham retirado [deixando-os]... sozinhos numa terra de ninguém”.

Um franco-atirador alemão foi identificado na torre de uma igreja do outro lado da rua. O meu pai alinhou seis atiradores numa janela grande e fez-lhes sinal para disparar. O atirador alemão caiu e os soldados americanos começaram a avançar novamente.

Na mesma entrevista, o meu pai falou da chegada a um “campo de concentração famoso onde soube que, três horas antes da chegada dos soldados americanos, os homens das SS tinham tirado todo o ouro e anéis de prata” que tinham sido confiscados aos prisioneiros e que fugiram para leste. A sua equipa especial “iniciou a caça, encurralou os nazis numa floresta e, depois de uma breve escaramuça, recuperou o lote”.

"A culpa é dos aliados"

O meu pai formou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Syracuse e numa entrevista com o The Syracuse Post-Standard depois da guerra falou do que considerava ser o maior problema que os aliados enfrentavam: o povo alemão achava que tinham sido os aliados a causar a guerra. Lembrou o interrogatório que fez a um membro importante da IG Farben, o conglomerado químico famoso pela produção do Zyklon B, usado para exterminar judeus nas câmaras de gás. O responsável disse que “tinha sofrido uma fractura craniana durante os bombardeamentos dos aliados e queixou-se de que as nossas tácticas aéreas tinham sido desumanas”. Quando o meu pai lhe recordou que tinha sido a Alemanha a desencadear a guerra, ele fez um ar estupefacto e respondeu: “Meu caro senhor, qualquer livro de história lhe dirá que foi o Reino Unido a declarar guerra à Alemanha.”

O programa de Monumentos, Obras de Arte e Arquivos foi criado pelos aliados para proteger a propriedade cultural depois da guerra. Muitos dos maiores curadores do mundo e especialistas em arte foram chamados a participar em unidades militares enquanto a Europa era libertada, trabalhando para devolver a arte pilhada pelos nazis aos seus legítimos proprietários.

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Manual editado pela Guarda Costeira americana para a Alemanha do pós-guerra

Os homens dos monumentos trabalharam durante seis anos até a unidade ser desmantelada. Se milhões de preciosidades culturais foram devolvidas, no Outono de 2013 descobriram-se 1400 peças de arte roubada num apartamento de Munique, que pertenciam ao filho de um antigo comerciante de arte nazi, mostrando que a guerra ainda não acabou para muitos indivíduos e instituições culturais.

Não sei porque é que o meu pai nunca falou das suas explorações durante a guerra — nunca mencionou que o seu comandante o elegeu para a medalha de Legião de Mérito ou que liderou uma equipa que procurava um tesouro escondido.

Estes documentos foram para mim uma revelação — a ideia de o meu pai, que era mais atarracado do que atleta, andar atrás das pilhagens nazis, perseguindo, interrogando e às vezes disparando contra nazis foi um choque total. Só posso pensar que tal como muitos soldados americanos que combateram na II Guerra Mundial, ou em qualquer guerra, a única coisa que queria era deixar esta experiência para trás e retomar a sua vida normal.

Mas os seus arquivos permitiram-me relatar o papel que teve numa das maiores e mais importantes caças ao tesouro da História. Sobretudo, deram-me uma ideia de um pai que eu nunca conheci: um homem que enfrentou enormes riscos na sua missão de garantir que os nazis nunca beneficiariam com os seus crimes.

 

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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