A odisseia dos ritmos do Carnaval com odores do Nordeste

Todos os anos, o Carnaval toma de assalto os centros do Recife e de Olinda e impõe regras duras. Só o frevo e o maracatu conseguem tornar a prova suportável.

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À meia-noite menos dez da segunda-feira de Carnaval, os tambores do maracatu Nação Porto Rico calaram-se, as damas da corte deixaram de rolar as suas saias exuberantes, o estandarte desceu ao chão e o tata Ramiro Oxóssi começou a descer da tribuna acompanhado com os seus filhos de santo. O silêncio começou então a instalar-se no pátio do Terço, no coração histórico do Recife, onde outrora existia o mercado de escravos. Tata Ramiro caminhou solene, majestoso na sua roupa branca ricamente bordada, empunhando junto ao peito o seu Eru Kere, um pequeno rabo de cavalo que simboliza o seu poder espiritual sobre a comunidade negra. Atravessou o passeio entre a multidão, chegou à calçada, subiu ao palco que rematava a rua, mesmo em frente à igreja do Terço, e instalou-se com os seus súbditos ainda faltavam uns cinco minutos para que o dia acabasse. A Noite dos Tambores Silenciosos, um momento mágico do Carnaval do Recife, estava prestes a iniciar-se.

O que se seguiu foi um momento de beleza pura que deu origem a uma arrepiante emoção colectiva. À meia-noite em ponto, as luzes do pátio apagaram-se, os batuques do palco começaram a ser batidos e Tata Ramiro começou a sua oração na língua nagô, originária do Benim e do Daomé, em África, no outro lado do mar. O maracatu, avisara antes o apresentador, só existe enquanto “manifestação de religiosidade” e Ramiro estava ali para convocar os Orixás (os santos protectores da religiosidade afro-brasileira), para “deixar uma mensagem de paz”, representar “a memória dos mortos” e homenagear sucessivas gerações de escravos que tornaram possível o ciclo do açúcar no Brasil colonial. Ramiro, 87 anos e um sorriso franco e bondoso, aprendeu a língua dos nagô com o pai, foi iniciado aos dez anos e por ser hoje o pai de santo mais antigo é o líder incontestado de centenas de maracatus de baque virado do Recife, do Pernambuco e até de outras nações de outros estados do Brasil.

No decorrer da cerimónia dos Tambores Silenciosos, a voz dos negros a cantar as suas ladainhas monocórdicas, um pouco tristes mas ao mesmo tempo enérgicas pelo vigor dos coros das mulheres e das batidas dos batuques fez uma pausa num Carnaval que, além da sua dimensão dionisíaca comum a outros carnavais do Brasil, é ao mesmo tempo um poderoso manifesto da cultura popular do Pernambuco. Se no Pátio do Terço os maracatus a desfilar com os seus estandartes, as suas Calungas (bonecas essenciais nos ritos do candomblé), as duas damas de corte e respectivos reis e rainhas nos remetem para a herança negra, umas ruas à frente podia imperar o frevo (a raiz da palavra é ferver) que descende das tradições filarmónicas europeias, mais adiante poderia encontrar-se o maracatu rural ou de baque solto, continuando com trios ou quartetos de músicos que vieram do interior para revelar os sons do sertão ou do agreste.

Pernambuco, potência cultural 

Em cada praça há uma música que todos ou quase todos sabem cantar e dançar, fazendo das ruas da cidade antiga um imenso palco. No Pernambuco, há uma comunhão de estilos que todos conhecem, um cancioneiro tradicional que todos partilham e um fervor pelas artes e pelos artistas daquele pedaço do Nordeste que todos cultivam. No Carnaval essa devoção atinge o auge. É por esses dias de mil e um concertos, de artistas anónimos ou de outros com projecção internacional, que se tira a prova que faz do Pernambuco uma potência cultural que talvez apenas o Rio e a Bahia são capazes de superar nesse imenso mapa da música brasileira.

“Seu” Bosco, por exemplo, veio de Lajedo, com o seu quarteto, e durante cinco noites andou pelas cruzamentos da Rua do Bom Sucesso ou pelas vias que chegam à Praça do Arsenal a dar espectáculos a troco de um peditório que lhes ia rendendo alguns reais. Face tisnada pelo sol do interior, olhos pretos incrustados numa tez com rugas onde encaixava o chapéu de pele tradicional do sertão, dizia que sabe tocar flauta “desde que nasceu lá no Lajedo” e que aproveita o Carnaval no Recife para “ganhar uns real” e “fazer o povo dançar porque o povo gosta de dançar”. Exímio na improvisação sobre uma base rítmica feita por uma caixa, um tambor e um triângulo, a sua música é irresistível para a dança. Ao quinto dia de deambulações pelo centro do Recife, a banda de “seu” Bosco acusava já o cansaço. O seu caixa dormitava enquanto agitava as baquetas. Mas até a dormir em pé a música funcionava.

Nos intervalos dos encontros fortuitos entre os blocos de maracatu e tocadores sertanejos, haviam de se encontrar jovens que com uma caixa, um tambor e um batuque dariam espectáculos improvisados de axé ou de afoxé, sempre acompanhados pelo aplauso e a dança de quem por ali se encontrasse. João Gabriel andava há dias a tocar frevo pelas calçadas com um grupo de quatro pessoas, às vezes ao serviço de blocos de Carnaval organizados, nos intervalos por sua própria iniciativa. “A gente sai daqui sem ar”, ria, enquanto se preparava para mais um arremesso de frevo para acudir à insistência de um grupo de jovens que o cercou.

A música popular é um domínio colectivo, não há quem não saiba bater uma alfaia (designação local para instrumentos de percussão) e surpreende o número de orquestras de frevo que irrompem ao acaso nas ruas do Recife ou nas ladeiras da vizinha cidade de Olinda — aqui, nas subidas, os sopros suspendem-se e só os tambores dão as notas da festa. O Carnaval convoca as crianças para integrarem blocos onde a dança e a percussão são obrigatórias. Há meses que, além de tratarem dos seus trajes para os blocos ou os seus disfarces, os pais compram nos mercados do centro os tambores à medida dos filhos. Surpreende ver maracatus onde pequeninos de quatro ou cinco anos batem com precisão os ritmos da festa. A programação do Carnaval permite-lhes assistir a concertos no Rec Bitinho (uma versão para os mais pequenos do alternativo Rec Beat).

Na noite de terça-feira, já tinha passado quase uma semana desde que uma névoa invisível se tinha instalado na humidade tropical que cobre o Recife e a transformara num lugar tão exuberante como inóspito. Das primeiras horas da manhã até horas altas da madrugada, as ruas do centro ficam apinhadas de gente colada pelo suor, pelos vapores etílicos, denúncias do esgoto, fumo da maconha, odores de carne e queijo coalho grelhados e uma poeira fina que se fixa na pele. Envolvidas num transe colectivo tão misterioso como irreal, as pessoas lutavam desesperadamente por dar mais um passo em frente na multidão que ia ficando cada vez mais compacta conforme se estava mais perto do Marco Zero, o ponto cardeal de todas as geografias do Recife. Para chegar a um destino ao acaso, que tanto pode ser feito por um palco onde artistas nacionais actuam como por uma esquina onde grupos como o do “seu” Bosco lhes podem acelerar o ritmo e os pôr aos pulos, centenas de milhares de pessoas aplicavam todo o seu estoicismo. Há quase uma semana que Recife e Olinda viviam o que com alguma certeza se pode considerar como um dos principais festivais de world music do mundo.

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Nelson Garrido

Festa aberta

Ao contrário do Carnaval do Rio de Janeiro ou de Salvador da Bahia, aqui o Carnaval é uma festa aberta, democrática, onde não se paga para seguir os blocos nem para assistir às centenas de concertos que se desenrolam ao longo do dia em 30 pólos espalhados pelos bairros recifenses. Ao contrário do samba ou dos ritmos negros da Bahia, a música que se instalou no coração da cidade e serve de energético a uma mole humana heterogénea conserva as inspirações das diferentes culturas do outro lado do Atlântico que fizeram o Brasil. O forró que se incrustou nas festas dos universitários ou nos bailes das paróquias em Portugal está por estes dias em suspenso até regressar em força por alturas das festas dos santos de Junho. O que agora impõe o ritmo são as diferentes cambiantes do maracatu, o coco, o afoxé que é comum a toda a musicalidade negra do Brasil e acima de todos o frevo, uma música de metais que abole a harmonia, a melodia e o ritmo para ficar mais perto do free jazz. O frevo é, como o fado, Património da Humanidade protegido pela UNESCO e a sua originalidade tornaram-no um caso de estudo do Lincoln Center, nos Estados Unidos, onde Wynton Marsalis o acolheu e lhe está a dar projecção mundial.

Ninguém sabe ao certo quantos terão sido os que no final da tarde apertaram os desfiles dos blocos, os que a meio da noite assistiram aos concertos no palco do Marco Zero ou simplesmente os que andaram por ali errando, de rua em rua ao sabor da maré humana, dos ritmos e da cerveja. No dia em que o Galo da Madrugada fez a abertura oficial do Carnaval, as autoridades calcularam que nos bairros centrais da cidade estiveram 1,7 milhões de pessoas. Com os seus 27 metros de altura e um peso de três toneladas, o Galo ficaria ali instalado, no meio de uma das pontes que cruzam o rio Capibaribe e ligam o velho Recife ao continente a simbolizar o poder e a grandiosidade do Carnaval. A poucos quilómetros, Olinda terá recebido uns dois milhões de pessoas que vieram principalmente dos estados do Sul do Brasil para subir e descer ladeiras, para seguir os blocos, aqui mais criativos nos temas e na encenação, e sentir na pele a raiz semântica do frevo.

O que se espelha nas cidades, porém, tem como matriz a cultura popular que geração após geração se preserva nesse mundo de “solidões vastas e assustadoras” (o título de uma obra histórica sobre a colonização do sertão) do interior. Em Bezerros, a 100 quilómetros do Recife, a celebração faz-se de máscaras elaboradas e de trajes que tornam irreconhecíveis os seus portadores, os papangus, tradição que aprimora e aprofunda o entrudo dos tempos coloniais. Mas na Nazaré da Mata, Tracunhaém, Carpina e em toda a zona de cultivo de cana de açúcar do Agreste de Pernambuco o Carnaval é o momento em que as memórias das senzalas dos escravos se recuperam e em que a exuberância e agressividade do maracatu rural explodem.

Ao ver desfilar os caboclos de lança a partir de um palco coberto com uma lona preta que tornava o calor insuportável, Nado Coutinho, prefeito de Nazaré da Mata, regozijava-se pelo vigor apresentado por “uma das nossas maiores raízes”. Para aquela comunidade de agricultores pobres, o maracatu que os citadinos do Recife adoram é mais do que um prazer lúdico. Nado Coutinho fala como se a auto-estima do Agreste estivesse aí ancorada. É o maracatu de baque solto, ou maracatu rural, que atrai pelo Carnaval jornalistas da National Geographic ou que os leva à Europa nos festivais etnográficos. Na segunda-feira, 24 maracatus desfilavam pelas ruas estreitas da pequena capital de um município com 31 mil habitantes e Nado rejubilava com a festa. Ao todo, existirão actualmente na zona do Agreste mais de cem grupos organizados, cada um com cerca de 100 elementos. Quer dizer que uns 10% dos habitantes da Nazaré praticam o maracatu.

Não há grandes certezas sobre a origem destas manifestações da cultura do interior pernambucano que se exprimem no Carnaval do Recife e de Olinda. Maracatu é no essencial uma música negra, baseada em instrumentos de percussão, que percorre as ruas e as ladeiras arrastando atrás de si centenas de pessoas que dançam livremente. Numa versão mais polida pelo choque com a harmonia da música europeia, o maracatu pode ser de “baque quebrado” e torna-se mais sincopado, requerendo passos de dança mais coordenados. Na cerimónia do Pátio do Terço, era esse o maracatu praticado. Mas na sua versão rural, a da Nazaré da Mata, o maracatu assume um “baque solto” e os tambores, as cuícas ou as caixas são batidas de forma caótica gerando movimentos livres e soltos nos circundantes.

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O rei do Congo

Mas, mais do que música, o maracatu rural é uma encenação, um ritual estilizado. No século XVIII, havia já nas cidades da colónia açucareira comunidades de “pretos forros” aos quais as autoridades conferiam um certo poder de auto-regulação. No bairro do Pina, por exemplo, há informações de um quilombo (uma comunidade autónoma de escravos) que existiu à margem da cidade até ao princípio do século XX. A eleição do responsável pela comunidade, o Rei do Congo, assumia assim o cerimonial sincrético, com poses negras e trajes europeus, cuja evolução acabaria por se cristalizar no maracatu. Um cortejo onde o rei e a rainha luxuosamente vestidos ocupam um lugar central, onde a sua corte de aias e aios lhes sublinha o estatuto de poder, onde a presença de uma Calunga denuncia o candomblé e a espiritualidade negra. A proteger toda a solenidade seguiam os caboclos de lança, os guerreiros com as suas cabeleiras garridas cuja cor se associa ao Oxum (divindade), golas que chegam a levar mais de 60 mil missangas e lantejoulas incrustadas, os chocalhos amarrados nas costas que produzem um barulho ensurdecedor.

“Eles passam todo o ano a fazer o traje”, diz Nado Coutinho, “à noitinha, depois de virem de cortar a cana”, cujas plantações se avistam nos vastos horizontes ondulados do Agreste de Pernambuco. As lendas dizem que, antes de cada desfile, os caboclos têm de acumular energia abstendo-se da actividade sexual e podem beber um elixir que, entre outros ingredientes, leva pólvora. Não se sabe até que ponto essas lendas são verdadeiras — e os membros dos maracatus ou divagam sobre o assunto ou atestam a existência destas práticas. O que é certo é que o desfile dos caboclos de lança é de uma enorme agressividade. Depois da ladainha dos mestres e contramestres, que dura um ou dois minutos, um apito dá o sinal para que eles mostrem o seu poder de afastar os inimigos da corte. Os tambores batem-se de forma caótica e os caboclos agitam as suas lanças, furiosos, olhos de raiva, como se estivessem possuídos pelo demónio. Na Nazaré da Mata, um ciclista atreveu-se a cruzar o seu caminho e foi rapidamente agredido por um caboclo. “Essa gente é bruta, é pessoal que trabalha na cana, não dá para se meter com eles não”, dizia no passeio José de Sousa, aprovando a agressão do caboclo.

Mais erudita é a tarefa do mestre Pedrinho Gabriel, 37 anos, mestre do maracatu Águia Douro. Ele tem de subir ao palco com o seu contramestre e tecer as loas, repetidas e sublinhadas pelo seu parceiro. Improvisa-as ou decora-as? “É metade”, diz Pedrinho, que acabara a sua apresentação com elogios ao prefeito, uma homenagem ao cantor popular pernambucano Dominguinhos recentemente falecido ou referências ao Big Brother Brasil. “Foi Deus que me fez poeta, sou poeta a 100 por cento”, diria ele no palco.

Lugar de cruzamento de todas estas raízes populares, Recife é um filão interminável de músicos e de músicas. Os já falecidos Luís Gonzaga e Dominguinhos fizeram o sertão das sanfonas e dos triângulos chegar ao mar e daqui foram projectados para todo o Brasil — e não só. Os seus versos falam da seca, de amores perdidos, dos mistérios que ainda hoje se contam na literatura de cordel, nos bandidos Lampião e Maria Bonita que mantêm viva a memória do cangaço (revoltas populares da primeira metade do século passado), recordam o rio São Francisco, os juazeiros e a pobreza eterna do sertão. Mas o Pernambuco que se mostrou nos palcos do Carnaval é também o reflexo do cosmopolitismo comum a uma cidade portuária e aberta ao mundo como o Recife.

Pelos palcos do Marco Zero passaram os pernambucanos Lenine e Otto, onde a electricidade se instala muitas vezes nos ritmos de inspiração local, onde a poesia está impregnada de referências aos orixás, ao candomblé, ao frevo, ao maracatu ou ao boi bumbá, outra tradição da cultura regional. No palco principal passou também a Nação Zumbi, que nos anos 90 se tornou uma das estrelas emergentes dos festivais MTV por força do talento e inspiração de Chico Science, morto prematuramente. O mangue beat (mangue é o território da lama que se avista nos canais do Recife) ainda hoje persiste, embora sem a força do seu criador. De Lenine a Alceu Valença, de Otto ao jovem China, a música arrasta multidões que cantam em coro os concertos do princípio ao fim.

E é também por isso que o Carnaval do Recife é mais do que a folia que arrasta multidões, que mobiliza 20 mil polícias vindos de todo o estado, mais de nove mil táxis (alguns chegaram de Petrolina, a 800 quilómetros no interior), uma logística gigantesca para gerir as necessidades fisiológicas de centenas de milhares de pessoas. Ao longo do dia, dezenas de blocos temáticos rompem pela multidão compacta, unindo pessoas de todas as cores e classes sociais (embora na génese haja uma estratificação entre os seus mentores), que cantam, riem, se abraçam e dançam. Pobres arriscam vergar-se para apanhar as latas para a reciclagem. Uma rede fina de distribuidores de cerveja, incluindo os que abastecem o gelo, torna a festa mais suportável e, com o passar das horas, hedonista.

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Nelson Garrido

No Carnaval mais democrático do Brasil, exige-se resistência e paciência para se estar a par da felicidade militante dos pernambucanos. Vai-se aprendendo por necessidade. Não é normal encontrar tantas músicas num tão curto espaço de tempo. Nem tanta autenticidade cultural. Nem tanta felicidade junta. O bloco que fez o funeral deste Carnaval depois da meia-noite de terça-feira fê-lo a cantar modinhas e continuou a rir depois de lançar as cinzas no rio Capibaribe. No dia seguinte, o Diário de Pernambuco noticiava na sua manchete: “Faltam 100 dias para a Copa do Mundo”. The show must go on.     

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