Lotte, a bandeira do Club Brugge que enrolou Portugal

Raoul Lambert numa homenagem prestada pelo Club Brugge
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Raoul Lambert numa homenagem prestada pelo Club Brugge DR
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Lambert em acção nos seus tempos áureos DR

Entre o primeiro golo de Raoul Lambert pelo seu clube de sempre e o salto para o profissionalismo decorreu uma década. Dez anos de eficácia, de força, de sentido de oportunidade. Dez anos de humildade e de fair-play, que se prolongariam até 1980, altura em que a Bélgica e o Club Brugge já estavam rendidos a um avançado que valia o seu peso em golos. Portugal que o diga.

Não traz boas memórias o primeiro embate oficial entre a selecção nacional e a congénere belga. A 17 de Fevereiro de 1971, e depois de seis jogos particulares frente ao mesmo adversário, Portugal esbracejava na luta pelo apuramento para o Euro 1972, na Alemanha. A deslocação a Bruxelas foi embaraçosa, muito por culpa de Lambert, que contribuiu duplamente (marcou aos 14’ e aos 64’, de grande penalidade) para o 3-0 final.

Quando as duas equipas voltaram a encontrar-se, nove meses mais tarde e ainda com o mesmo objectivo em ponto de mira, o seleccionador José Gomes da Silva já sabia o que esperar. Mas voltou a ser surpreendido. Num jogo em que Portugal precisava de arriscar, o melhor que conseguiu foi chegar ao empate, aos 90’, anulando dessa forma um golo de… Raoul Lambert, claro. Esfumava-se, nesse momento, o sonho da qualificação. 


O belga que, até hoje, mais golpes infligiu à selecção portuguesa era um homem tranquilo. Nascido em Steenbrugge, nos arredores da cidade de Brugge, a 20 de Outubro de 1944, Raoul era um dos 11 membros de uma família modesta e numerosa, com tradição no futebol (o irmão Eric fez grande parte da carreira no Gent). Eram tempos de jogar descalço no campo pelado do SK, tempos de imaginação vívida e poucas possibilidades.

“O futebol não é apenas a minha profissão, é também o meu primeiro passatempo”, diria Lambert anos mais tarde, retratado no livro Voetballen is Aanvallen (qualquer coisa como Jogar futebol é atacar). Essa era a especialidade de Lotte, apelido que herdou de um bisavô mas cujo significado ficou perdido no tempo. E, muito graças a ele, tornou-se também na especialidade do Club Brugge.

Essa ligação inquebrável aos “azuis e negros” começou em 1957, ainda nas camadas jovens, cinco anos antes da estreia oficial pelos seniores. Tinha 17 anos, 10 meses e 18 dias quando jogou pela primeira vez, frente ao Lierse (2-0), tendo o primeiro golo chegado praticamente no final da época, numa derrota aos pés do Berchem Sport (4-1).

Era o despertar de uma lenda para um clube nascido em 1891. Começava então a colecção de 373 jogos no campeonato (213 golos), 41 na Taça da Bélgica (32) e 43 nas provas da UEFA (22), com a década de 1970 a servir de referência para as gerações futuras. Sagrou-se campeão em 1973, 1976, 1977, 1978 e 1980 (até então o Club Brugge só tinha um título, arrecadado no longínquo ano de 1920) e atingiu duas inéditas finais europeias.

Em 1976, a Taça UEFA. Na primeira mão, o Liverpool impôs-se, em Inglaterra, por 3-2, confirmando a supremacia na Bélgica, com um empate (1-1). Em comum, os dois jogos tiveram golos de Kevin Keagan (para os "reds") e de Lambert, obviamente. Por isso, quando, em 1978, os dois clubes tropeçaram novamente um no outro, desta vez na final da Taça dos Campeões Europeus, o Club Brugge contava com Lotte para ensaiar a ansiada vingança. Mas uma lesão muscular afastou-o de Wembley e a sua ausência contribuiu para afastar os belgas do golo (desaire por 1-0).

A relação próxima com problemas musculares foi muitas vezes apontada como o grande handicap de um esquerdino que sabia antecipar cenários e ocupar a faixa certa de terreno, deixando um legado difícil de igualar. Ao recorde de 267 golos pelo clube junta um outro: 13 hat-tricks, o último dos quais em Dezembro de 1974, frente ao Lierse (4-0).

Longe iam os tempos em que trabalhava numa fábrica de cerveja. Tinha subido na vida como uma febre repentina, mas sem nunca perder o chão. Os treinadores elogiavam-no (com Ernst Happel à cabeça), os adeptos idolatravam-no. E não apenas os do Club Brugge. Pela selecção nacional, fez 33 partidas, apontou 18 golos e tornou-se no primeiro belga a figurar no “onze” ideal de um Europeu, o de 1972.

“Devo confessar que não sou um tipo fácil, mas não me lembro de um treinador com quem tenha discutido. Se um treinador manda executar um exercício, deves cumpri-lo de bom grado. Se ele me mandasse para a baliza eu não ia contrariá-lo”, assinalou Lambert numa reportagem sobre o seu passado. Um registo de respeito que mantinha dentro de campo. Basta ter em conta que viu apenas dois cartões amarelos em toda a carreira.

Quando, a 11 de Maio de 1980, se despediu dos relvados, mereceu a ovação da praxe no momento da substituição. Tinha 35 anos, seis meses e 19 dias e uma vida inteira no clube de sempre para recordar. Os adeptos recompensaram-no ao elegê-lo como o melhor da história do Club Brugge, uma bandeira com rosto e um passado de glória.

Foram 18 anos na mesma casa, actuando primeiro com o número 9 e depois com o 11. Foram 18 anos a lidar com os cantos e recantos das balizas. Por isso, quando anos mais tarde, na qualidade de elemento do departamento de prospecção, se cruzou com Jean-Pierre Papin, então no Valenciennes, não hesitou em recomendar a sua contratação. Estava encontrado um substituto à altura. Mas só duraria uma época.

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