Arsène é mesmo nota vinte no reino das "chicotadas"

Treinador francês comemora duas décadas no comando do Arsenal com a ambição de "vencer absolutamente tudo" e sempre à procura do jogo perfeito.

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Dylan Martinez/Reuters

Quando foi apresentado em Highbury, a 22 de Setembro de 1996, Arsène Wenger teve uma falha imperdoável, ao não repetir os “votos” de qualquer noivo que se preze, embora o cada vez mais banalizado “prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença”, dirigido ao Arsenal, pareça, subitamente, ameaçado pela oferta da coroa de seleccionador nacional de Inglaterra, tema que promete ganhar proporções imprevisíveis depois das ondas de choque geradas em torno do escândalo Sam Allardyce.

Ao completar, hoje, 20 anos ao leme do Arsenal — foi a 1 de Outubro de 1996 que deu o primeiro treino no clube —, Wenger, na véspera do encontro com o Burnley, não pensará no trajecto feito de glórias e de inevitáveis frustrações. O treinador francês de 66 anos, que tinha planeado retirar-se do futebol no dia em que completasse meio século de vida, pensará apenas em conseguir o jogo perfeito, quimera de que ainda não pretende abdicar e que faz do pequeno Arsène, criado num pub junto à fronteira entre França e Alemanha — a meio caminho entre Estrasburgo e Estugarda —, uma verdadeira relíquia no futebol dos nossos dias.

Com a saída de cena de Sir Alex Ferguson, Wenger aproxima-se do recorde de longevidade do escocês que há duas décadas questionou a lógica da contratação de um francês vindo do futebol japonês. O então manager do Manchester United não resistia à tentação de espetar uma alfinetada embebida em puro humor britânico, em jeito de mensagem de boas-vindas: “O que percebe um francês que treina no Japão do futebol inglês?”, provocou, antecipando o que viria a tornar-se num duelo de titãs.

A dúvida do técnico que nesse ano se sagraria campeão era, contudo, legítima, consubstanciada no facto de a Premier League ser uma espécie de coutada dos técnicos britânicos. As excepções à regra eram Ruud Gullit (Chelsea) — com a atenuante de ser já um nome conhecido na praça — e Wenger (Arsenal), a novidade.

Realidade totalmente subvertida em apenas duas décadas, com uma invasão de estrangeiros, liderada por Mourinho, Guardiola, Klopp, Conte, Koeman e Pochettino.

A resposta do miúdo que cresceu a ouvir avidamente todo o tipo de conversa de café que respeitasse ao fenómeno futebolístico não tardou. A primeira década de Wenger colocou-o como o treinador mais bem sucedido na história dos “gunners”, com três títulos de campeão, entre taças e uma campanha denominada “invencível”, sem derrotas na Liga.

O Arsenal chegaria ainda à sua primeira final da Liga dos Campeões, conquistada pelo Barcelona, em Paris. O registo poderia, perfeitamente, sublimar-se, caso os londrinos não tivessem falhado sobre a meta os títulos que colocariam Wenger num pedestal praticamente inalcançável.

A consistência (em 20 anos nunca fez pior do que um quarto lugar na Premier League), juntamente com o futebol de autor — para muitos um espectáculo dentro do espectáculo — capaz de potenciar jovens futebolistas de talento incontestável são das marcas de Arsène Wenger.

Uma imagem de que o Arsenal não abdica, explicando-se a resiliência da administração e do técnico, escorada na coragem e bravura necessárias para contrariar o ritmo alucinante de troca de treinadores na Premier League, com uma média de 11 “chicotadas” por clube nas duas últimas décadas.

Algo ainda mais precioso, por ser público e notório o desempenho do Arsenal nos últimos dez anos, uma desilusão em matéria de troféus conquistados, a motivar críticas como as dirigidas directa ou indirectamente ao técnico francês por rivais como José Mourinho, o mais mediatizado ódio de estimação de Wenger.

A estabilidade e os valores transmitidos às novas gerações são o cimento desta ligação que tem construído uma identidade única e que tanto para Wenger quanto para os donos do clube se sobrepõe ao resto, embora seja cada vez mais raro no mundo moderno defender princípios em detrimento de resultados e números, sem retirar a ambição de perseguir a vitória e assumir que o objectivo é “vencer absolutamente tudo”.

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