Uma lebre com sorte

O encontro entre um jornalista e uma lebre serve de pretexto a um périplo pelo Norte da Finlândia. "A Lebre de Vatanen", que em 1975 tornou popular Arto Paasilinna, foi finalmente traduzido para português

Helsínquia fica no Sul. Heinola, Nilsiä, Ranua, Posio, Rovaniemi, Sodankkylä, Sompio ficam no Norte. "A lebre de Vatanen" leva-nos numa viagem pela Finlândia do imaginário comum: paisagens de densas florestas, lagos e rios de águas cristalinas com pescadores bem agasalhados nas margens, aqui e ali, uma cabana com fumo a sair da chaminé, as indispensáveis saunas, animais selvagens, muita carne de rena à mesa. A interromper a paisagem, cidades pequenas com pouco tráfego e poucos habitantes.

Nestas terras imaginou Arto Paasilinna há 35 anos um romance que mistura traços do burlesco, através da tragédia de um homem só a quem tudo acontece, com a afirmação absoluta do primado dos valores ecológicos.Vatanen, um jornalista que um dia deixa de o ser ao salvar uma pequena lebre que é atropelada, torna-se com as suas andanças pela Lapónia e pelo Círculo Polar Árctico, uma espécie de bravo soldado Shveik das estepes, por todos atormentado. As paisagens de Paasilinna, sobretudo na descrição da matilha de caçadores ébrios, assemelham-se também às de um quadro de Brueghel onde, na paisagem desolada do frio, se percebe a luta pela sobrevivência de pequenos homens do tamanho de formigas sofredoras.

Vatanen é então o anti-herói a quem tudo acontece ao longo dos 24 capítulos em que se divide o romance. Por causa de uma lebre, abandona a mulher, pesca clandestinamente, consome álcool por ele destilado clandestinamente no meio de um incêndio florestal, profana um corpo recentemente defunto, aparece sem ser convidado num jantar oficial, caça várias vezes espécies protegidas, entre as quais um urso muito resistente, entra na União Soviética sem visto nem passaporte. A lista não é exaustiva. A lebre é o detonador destas aventuras em que fica exposta a tacanhez humana e a capacidade de compreender que alguns incidentes só se tornam acidentes por mero acaso. A escrita breve, seca, mas irónica, de Paasilinna produz este efeito. O de percebermos como foi sendo minado o espaço reservado à aventura do acaso na vida de cada homem. Porque antes de trazer uma lebre ao colo era esta a pele de Vatanen: "Eram um jornalista e um fotógrafo requisitado para o serviço, dois seres cínicos, infelizes, com cerca de quarenta anos: as esperanças dos seus tempos de juventude estavam longe, muito longe de se terem concretizado. Casados, enganados, desiludidos, ambos tinham um princípio de úlcera no estômago e outras preocupações quotidianas" ?(página 7).

A exposição das vidas cinzentas e a crítica do sistema político finlandês também passam pelo livro, onde ficamos a saber que, em meados dos anos 70, o país tinha um Presidente, Urko Kekkonen, que democraticamente se eternizava no cargo desde 1956. São marcas de água de Paasillina, alguém que quando escreveu, em 1975, "A lebre Vatanen" era ele próprio jornalista então quase na meia-idade (nasceu em 1942 na Lapónia), depois de ter sido lenhador e operário agrícola. Este romance mudou a sua vida e permitiu-lhe dedicar-se a escrever romances a tempo inteiro. A partir da descoberta pela França da sua obra, esta tornou-se mais conhecida e hoje está traduzida em quase trinta línguas, tendo vendido já sete milhões de livros. O estilo cómico e cínico mantém-se dentro do universo da comédia de situação: entre o realismo e o absurdo, com gente bizarra, independente e rodeada de animais selvagens. A paisagem finlandesa, agora mais reconhecível pelos leitores fiéis em todo o mundo, desdobra-se em si própria. Pressente-se que Amélie Nothomb leu estes livros antes de escrever os seus, mas secou-os de optimismo.

Porque em "A Lebre de Vatanen" o oxigénio abundante permite encontrar energia suficiente para que a vida se acabe por refazer, basta saber utilizar o que a natureza nos oferece: "Vatanen pôs um vidro novo que se partira. No interior, esventrou as pranchas do soalho e colocou outras novas. Transportou ainda o conteúdo de alguns formigueiros abandonados para preencher os espaços entre duas camadas de pranchas do soalho - um bom isolamento."A Relógio D`Água promete para breve mais dois romances de Arto Paasilinna.

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