Um mundo melhor

Perigoso e deliciosamente demente, o mundo dos Thee Oh Sees rebenta de vida

Tal como Ty Segall, outro membro distinto da comunidade rock'n'roll/ psicadélica/pé no-fuzz-e-cabeça-no-punk, os The Oh Sees de John Dwyer não perdem tempo quando não há tempo a perder. Havendo estúdio, há canções gravadas, havendo canções gravadas há um novo disco. É bom quando as coisas são assim tão simples. E é melhor, e glorioso e agradeçamos enquanto pudermos, quando essa vontade de fazer origina algo como Floating Coffin, álbum maior de uma banda que parece incapaz de dar um passo em falso. O segredo: um imaginário que transforma o carburador de tanta boa música, o tédio, em cenário de delírio sci-fi/ BD. Tudo explicado em Minotaur, a última canção do álbum, magnífica pecinha pop esquizóide que abandona a personagem mitológica a pizzas e à TV que não dá nada de jeito enquanto uma figura de guitarra, colada ao ondular do violino, lhe dá uma gravidade que matiza o cómico da situação. Minotaur é a canção atípica do álbum. A despedida em forma de balada perversa, o downer necessário depois da sobredose de anfetaminas que são as nove canções anteriores.

Quem lhes conhece os concertos sabe o que são os Thee Oh Sees. Um jorro de energia incontrolável, com as canções a sobreporem-se entre si, com Dwyer agarrado ao braço da guitarra, subida e presa ao peito, como se aquele momento fosse o único que interessa. Em disco, muda a definição. As canções têm mesmo princípio e fim e a produção permite-nos ver além da nebulosa sónica. Ainda assim, a secção rítmica funciona sempre como locomotiva punk em ritmo frenético, Dwyer solta sempre um grito, o mesmo grito, antes de as palavras darem lugar ao discurso eléctrico: guitarras em electrocussão, guitarras metálicas chocalhadas, guitarras que, qual violoncelo, desenham manchas sonoras ou se entregam a reverberações barretteanas, guitarras de um garage que perdeu a inocência mas não o deslumbramento com a sua capacidade de nos transportar na sua voragem.

Basicamente, os Thee Oh Sees são uma banda que conhece toda a história de trás para a frente, do obrigatório às notas de rodapé, das figuras de culto aos nomes que só “freakzinhos” do vinil poderiam descobrir. E já passaram há muito à próxima fase: incorporaram toda essa informação de tal forma que são incapazes de fazer música “à maneira de”. Floating Coffin é indiscutivelmente, e no melhor dos sentidos, um disco de assinatura The Oh Sees: ou seja, as guitarras atacam-nos os sentidos com um volume altíssimo, a secção rítmica acelera como se o tempo fosse sempre lento de mais e as vozes de Dwyer e da teclista Brigid Dawson escondem-se na mistura entre mil filtros e ecos, mas é óbvio que o balbuciar acelerado dele e a doçura nublada dela dizem mais do que sugerem.

Em Maze fancier, Dawson é um sopro de inocência infantil rodeado de tentações profanas, habitando um sonho opiáceo. Floating coffin, por sua vez, é canção neurose: voz de feitiçaria psicadélica e um Syd Barrett com as drogas todas trocadas a dançar o Pogo de forma tão descoordenada quanto atraente. Quase no fim, em Tunnel time, há uma linha de baixo com ligação directa a Love buzz, dos Shocking Blue, popularizada pelos Nirvana, que é mote para entrada num delírio rock'n'roll em que tudo parece guiado pela intuição e por um qualquer desconforto que apenas aquele som, este som (mais alto!, mais rápido!, mais forte!), é capaz de aplacar. Ouvem-se tresloucadas vozes soluçantes (um Gene Vincent movido a choques eléctricos) e anda por ali um órgão a perder-se em divagação psicadélica no olho do furacão. É tudo incrivelmente intenso, uma caminhada no fio da navalha com o peito a rebentar de vida. O mundo dos Thee Oh Sees: perigoso e deliciosamente demente, um sorriso sarcástico e absurdamente feliz à beira do precipício. Neste preciso momento, não imaginamos um melhor em que viver.

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