Tanto mar, 2014

1. Abril: não desci a Avenida Paulista no Dia do Índio, mas quando esta crónica sair já terei descido a Avenida da Liberdade com uma amiga vinda do Brasil, e a festa ainda vai ser linda. Oh, axé do afoxé, Caê, Caetano Veloso, eu queria que você lesse o texto que o bárbaro Marcos Lacerda escreveu há dias sobre você. Ele está com metade da sua idade, fincado no Rio de Janeiro, liga Agostinho da Silva ao futuro, lembra tudo o que você é. Li-o no Alentejo, onde também se fala gerúndio, como vi a Avenida Paulista chegando de cocar no Teatro Oficina, onde você, jovem, quase perdeu a roupa. Foi no Oficina que aprendi: aqui a gente se come. E claro que foi você quem escreveu que um índio virá. Chico já mandara a carta, tanto mar, pá. Posso responder 40 anos depois? Tanto mar nos juntando, cara.

2. Falo de oliveiras de mil anos e o Odyr Bernardi, lá no interior do Rio Grande do Sul, começa o dia lendo sobre oliveiras de mil anos. Ele desenha um homem reclinado no século XIX e eu termino o dia vendo um homem reclinado no século XIX. Não sei que distância isso dá, convertida para as léguas do Tanto Mar, mas já só depende de nós, não há generais. Podemos inaugurar a via rápida Alentejo-Pelotas, adicionar Fred Coelho no Rio de Janeiro, trocar o pré-Copa por queijo de ovelha, partilhar até aos antípodas. Nos aguardem.

3. Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, mas também Vinhais, Geraz do Lima, Celorico da Beira, alturas de onde esta semana me chegou a inconsútil bondade dos desconhecidos, correio antigo em tempo real. Se aqui no Alentejo voltei a acender a salamandra, imagino o frio lá pra cima. 

4. Começando por Vinhais: andei perto quando há anos fui atrás do Padre Fontes, do cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, mas nunca estive mesmo lá. Pergunto ao meu correspondente se conhece o António Brás, que escrevia de Vinhais na época em que havia suplementos literários. Ele não responde a isso, mas escreve um texto à altura dessa época, assim para nada, para dar. Aquilo a que os gregos chamavam ter paixão. 

5. De Geraz do Lima, chega uma carta que a certa altura diz:

Do seu texto ficou-me um amargor: não ter escolhido o Norte para viver. Mas, pensando um pouco, entendi que optasse pelo Alentejo depois de ter vivido algum tempo no Brasil, onde os horizontes são mais dilatados. O Alentejo, relativamente ao Norte, deixa-nos respirar sem a sensação de que abafamos. Todavia, ao ler a sua crónica de hoje, voltei a pensar que melhor teria sido o Norte porque nunca prenderia a cama carioca entre a “ameixoeira e o pau da cerca”. De carvalho a carvalho estendida, olharia as copas entrelaçadas e sentir-se-ia numa abóbada de pequenos vitrais por onde o sol e a sombra se configuram e nos embalam numa sesta de silêncios, quebrados, às vezes, pelas aves que à volta vivem, distantes de gritos de festa por um golo entrado. E não teria problemas com o mapa da Amazónia. Mas talvez o Vasco não apanhasse caracóis.

Foto

Preciso de outra vida para conhecer Geraz do Lima, e atar a minha rede carioca a dois carvalhos, e então ver: ouro sobre azul.

6. Já o homem em Celorico da Beira não é de Celorico da Beira. Nem perguntei de onde era, mas tem um apelido sul-asiático. Contou-me que andava em viagem pela Península Ibérica com a mulher e o filho quando o carro explodiu. Mulher e filho voltaram para a Coreia e ele continuou em viagem para a serra da Estrela. Este homem chegou-me através de outro homem que também nunca vi, um português que mora em São Paulo. O português de São Paulo acabara de ler a crónica em que fui visitar José, o meu vizinho alentejano, e nesse mesmo momento decidiu escrever a mim e ao amigo de apelido sul-asiático que ele não via há anos. Convocou-nos em simultâneo num chat de Facebook porque achou que tínhamos de falar um com o outro. Por acaso estávamos ambos mais ou menos online (o menos é a minha banda móvel). Então cruzámo-nos, eu no Alentejo, o português em São Paulo e o apelido sul-asiático a caminho da serra da Estrela. Sendo que o português de São Paulo não fazia ideia de que a serra da Estrela é a serra dos meus avós. Tudo aquilo era tão fora e estava tão certo que o apelido asiático começou por perguntar ao amigo se estava “alto”. O amigo respondeu que sim, que estava “alto”, porque acabara de cheirar um molho de poejos. Eram os poejos da minha crónica, nas terras do José. Depois retirou-se da conversa, como perfeito anfitrião. O apelido sul-asiático continua em Celorico da Beira, porque não há autocarro, nem comboio, nem boleia. Se acaso o virem, levem-no às Penhas Douradas, por gentileza.

7. Hipertexto é isto, uma mensagem, várias garrafas, tanto mar. Notícias do quintal? A minha rede carioca tomou o seu primeiro banho de hemisfério Norte. As sementes de abóbora, que estavam secas, boiam na cuia da Amazónia. A copa do diospireiro, tão esguio, explode em todas as direcções, como uma bailarina de cabelo afro. E as folhas da uva moscatel, que há um mês mal se viam, já dão para uma sombra, embora não faça sol. O pé de jasmim 1 não pegou, vamos ver o 2. Entretanto, o Nuno (que é o pai do Vasco dos caracóis) plantou-me basílico. Não é um vizinho, é um guardião. Tanto me fala de Beckett, como das seringas que achou aqui, ao comprar a casa. Talvez isto fosse meio ruína, meio boca-de-fumo, estamos a falar de há muitos anos, quando as pessoas ainda achavam que o plástico ia desaparecer, como diz o Nuno. Perdão por todo o plástico que misturei com casca de laranja, nós é que vamos desaparecer daqui a nada, mas entretanto estamos cá. Basta ver a vida no quintal depois da chuva para levar a sério cada pedacinho de plástico. Perdão, estorninhos, borboletas, escaravelhos, lagartixas, folhinhas em geral.

8. De resto, vocês sabem, esta foi a semana em que Gabriel García Marquéz morreu, não tenho um único livro dele comigo, ficaram noutra vida. A Joana Villaverde, que vai a Ramallah, falou-me de um livro que se passa em Ramallah, e idem, outra vida. A diferença é que talvez eu nunca volte aos Cem Anos de Solidão e voltarei de certeza a Ramallah. Um amável correspondente começou a ler um livro meu e disse-me que não sabia se eu entendera Israel. Suponho que uma vida não chega para entender Israel. Esta semana foi Páscoa, vocês sabem, mas eu tenho esperança de ser judia, árabe, berbere, mulata. Em Fevereiro, na véspera de eu deixar o Brasil, a minha amiga Daniela Moreau, paulista-baiana, apontou a mancha no meu antebraço e disse que era a marca dos mestiços. Eu estava tão triste, coração escangalhado mesmo, que talvez fosse só para me dar alegria. Gosto de pensar em Jesus como homem que conheceu mulher. Nunca serei cool como o Bruno Pernadas que ainda esta semana pôs 11 pessoas a tocar no palco do Maria Matos, como se estivessem sozinhos na mata (um pequeno Cosme Velho, disse o João Paulo Feliciano, que sabe porque esteve lá). Eu sou uma romântica, continuo a achar que Werther está vivo: é gay, é paulista, mora em Berlim, além de poeta é DJ e chama-se Ricardo Domeneck.

9. A propósito de paulistas, para acabar. O textaço do Marcos Lacerda (doce bárbaro que parece a reencarnação do Mário de Andrade, e fica feliz de ouvir isso, ou que o caos dele é nietzschiano, porque se interessa por tudo, e especialmente por Portugal-Brasil, tanto mar): podem lê-lo na Polivox, nova revista que se acha na rede, entre qualquer árvore (conta com mais favoritos meus, o Fred, o Paulo da Costa e Silva). E, já agora, espalhem o pólen do outro Andrade, o Oswald: a gente fica forte quando se come. 

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