"Café Müller": o "8 ½" dela

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Pina Bausch Gonçalo Santos

Há obras de crise que se tornam marcos. "Café Müller" pode ser vista assim. O "8 ½" dela, disse Fellini. Jorge Silva Melo, José Pedro Croft, Gil Mendo, José Sasportes e Olga Roriz também se reconheceram.

Podemos perguntar quantas oportunidades mais haverá para ver Pina Bausch dançar "Café Müller".

É o mesmo que perguntar quantas oportunidades mais haverá para ver Pina Bausch dançar.

O ano foi 1978. Depois de um período particularmente intenso, com três peças criadas em apenas 11 meses "Komm tanz mit mir/ Vem, dança comigo", em Maio de 1977, "Renata wandert aus/Renata emigra", em Dezembro do mesmo ano, e "Er nimmt sie an der Hand und führt sie in das Schloß, die anderen folgen/Ele leva-a pela mão para o castelo, os outros seguem-nos", em Abril já de 1978 Pina Bausch é convidada a fazer uma nova obra em apenas duas semanas. Foi a primeira e única vez até hoje, desde a criação da sua companhia, em 1974, que Pina Bausch decidiu estar em palco. A única criação, entre o que é hoje um reportório de 41 obras, em que a podemos ver em cena a ela, a Papisa, essa presença nodosa e esguia, como uma árvore de Inverno, permanentemente vestida de negro e com tanto de vital (afi nal, quantas fi guras da dança preenchem assim o nosso imaginário?) quanto de fantasmático (pensando bem, a forma como nos escapa e obceca, a forma como sentimos que a perdemos sem que realmente se desvaneça não estará ao nível da assombração?).

Fantasmático, dizíamos: é como uma presença espectral uma mulher magríssima, descalça e tacteante, vestida apenas com um "negligé" branco, longuíssimos braços estendidos, cabelos soltos e olhos fechados que Pina Bausch entra em cena em "Café Müller" para se pôr a dançar sozinha, sonâmbula e desamparada, entre um amontoado de mesas e cadeiras.

À época da criação desta peça, a coreógrafa tinha 38 anos e tinha assinado 11 trabalhos com a sua companhia, o Tanztheater Wuppertal: "Komm tanz...", "Renata..." e "Er nimmt sie...", mas também momentos fundamentais como "A Sagração da Primavera" (1975), e "Barba Azul", (1977). Quando a viu, o realizador italiano Federico Fellini reconheceu-se: "Com 'Café Mülller', Pina Bausch criou o seu '8 ½'", disse ele.

Quinze anos antes, em "8 ½", Fellini, que vinha da sua oitava obra com o sucesso estrondoso de "La Dolce Vita" (1960), fizera um autoretrato agridoce ao contar a história de um realizador esgotado, incapaz de uma boa ideia para uma obra de continuidade, a nona da sua carreira.

Um meio filme, gesto de recurso, obra de crise tornada marco da filmografia internacional: "Café Müller", uma peça excepcionalmente curta 40 minutos, em vez das habituais duas horas de Bausch e com um elenco excepcionalmente reduzido seis bailarinos, em vez dos habituais 20, ficou também assim no percurso de Bausch, a última das suas peças em que não se usava a palavra, lamento de impotência e impossibilidade tornado ícone instantâneo.

Guardam-se imagens precisas: uma divisão cinzenta com painéis de vidro transparente e uma grande porta giratória; as deambulações de Pina, lá atrás, ou cambaleante dentro da porta giratória; a violência de um casal que se abraça e beija uma e outra vez, manipulados como marionetas por um terceiro elemento; as entradas e saídas esporádicas de uma mulher de escarpins e peruca vermelhos no meio do gris; a tensão das perseguições, fugas e abatimentos súbitos de um homem loiro; o frenesim de outro homem que não pára de arrumar e rearrumar o caos do mobiliário; os choques brutais contra as paredes; as repetições, sempre as repetições e os ecos de vertigem quase circular.

Lirismo do quotidiano "Era o lirismo absoluto do quotidiano, que era o que estava no ar do tempo naquele momento em Berlim, o cristal do que de mais fresco se vivia na altura", diz o encenador e director do colectivo Artistas Unidos, Jorge Silva Melo, que, à época estava a trabalhar na Schaubühne, o mais importante dos teatros daquela que é agora de novo a capital alemã.

Em Portugal, Silva Melo (lembramse da sua "Na Selva das Cidades" de há dez anos, toda mesas e cadeiras?) tinha visto pouca dança "acho que o Ballet Gulbenkian e o Merce Cunningham, no Tivoli".

Na Alemanha, "Café Müller" tinha tudo para a sua geração. Foi um amigo, o conhecido encenador e dramaturgo Heiner Müller, quem lhe falou na peça e o encenador recorda tê-la visto apenas um ou dois meses depois da morte do líder estudantil Rudi Dutschke e ainda com as imagens do seu enterro, em Dezembro de 1979, bem presentes: "'Café Müller' tinha também isso: a nostalgia das revoluções, o refl uxo de todos os movimentos de esquerda e a hipótese de um sentido de comunidade, com um isolamento das personagens indissociável de todas as vivências da Alemanha pós-'soissante-huitarde'".

"Café Müller" era "uma coisa completamente nova, fresca, enérgica e poética" na Berlim do fi nal da década de 1970 e, de certa forma, continuava "uma coisa completamente nova, fresca, enérgica e poética" para a Lisboa de meados da década de 1990, quando foi pela primeira e única vez apresentada em Portugal, por ocasião do fórum Lisboa94, Capital Europeia da Cultura.

Cinco anos antes, Bausch fora uma revelação em Portugal durante os Encontros ACARTE 89, da Fundação Calouste Gulbenkian, com "Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört/ E da montanha ouviu-se um grito". José Sasportes, que em 1985 estivera no Teatro de La Fenice de Veneza para assistir ao primeiro ciclo retrospectivo dedicado à coreógrafa, empenhou-se na criação de algo semelhante para a Lisboa94, simultaneamente uma homenagem a Madalena de Azeredo Perdigão, entretanto falecida, mas que fora responsável pela criação do Serviço ACARTE, e a primeira apresentação da coreógrafa em Portugal. Estavase na era "pré-especialização", em que os públicos eram realmente transdisciplinares e "Café Müller" foi um acontecimento que extravasou em muito as fronteiras da dança.

"Lembro-me de ter fi cado muito impressionando. Interessou-me particularmente a relação do corpo com o mobiliário, que era precisamente aquilo em que eu estava a trabalhar na altura", recorda o escultor José Pedro Croft. Havia "o lado errático de circulação no espaço, perturbador e mágico", "a deambulação dos corpos que, de maneira absolutamente inesperada, acabavam por encontrar o seu caminho" e "a fragilidade" das presenças dos intérpretes, "sempre à beira da ruptura, mas com a força da sobrevivência".

"Em 1993 eu tinha feito uma escultura que esteve muito tempo no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian que era uma mesa virada ao contrário e com uma grande esfera em cima. Estava a trabalhar a ideia de limites, de um estar antes do precipício e foi tudo isso que senti perfeitamente neste espectáculo.

Foi fortíssimo." O trabalho de Pina Bausch tem isso, diz José Pedro Croft: "A força de quem vai ao Inferno, mas sabe que volta a subir." Perto do fi m Tal como grande parte dos agentes da dança em Portugal, Gil Mendo, hoje professor do Conservatório Nacional e programador da Culturgest, já tinha visto "Café Müller" em vídeo. Mas apenas em vídeo. "Em 1994 já se tinham passado 16 anos desde a criação, não se pode dizer que ainda fosse uma peça muito inovadora, mas era uma peça primorosamente interpretada e com tudo o que Pina Bausch posteriormente viria a trabalhar. Muito expressionista, mas com fórmulas de composição que se podem considerar abstractas." "Hoje", sublinha Gil Mendo, "Pina Bausch é bem mais popular do que era em 1989 e 1994. Hoje os espectáculos dela enchem e ela é bem mais conhecida, mas acho que as pessoas, tendo em conta as peças mais recentes, a confundem com entretenimento." Pina Bausch, diz Gil Mendo (ou, pelo menos a Pina Bausch de que aqui falamos, dizemos nós), não é entretenimento: "Em 'Café Müller' é vê-la numa das peças com que ela causou surpresa, uma das suas peças que inovaram, que introduziram novas formas de trabalhar, de misturar teatro e dança.

É uma peça de excepção, muito embora pertença a um período em que todas as suas peças são de excepção." Foi a altura de "Frühlingsopfer/A Sagração da Primavera" (1975), "Die sieben Todsünden/ Os Sete Pecados Mortais" (1976), "Blaubart/Barba Azul" (1977), "Kontakthof/Lugar de Contactos" (1978) e "Arien/Árias" (1979). Desde então, houve dezenas de outras obras, muitas do longo ciclo de encomendas sobre cidades que têm constituído grande da produção bauschiana dos últimos tempos, uma espécie de "fase rosa" (é a ela que pertencem "Masurca Fogo", de 1998, e "Nefés", de 2003, ambas apresentadas neste festival) em que, regra geral, os fãs do negrume e acidez da Pina Bausch dos primeiros tempos não se revêem.

A esta distância, obras como "Café Müller" ou "Nelken/Cravos" (1982) parecem pertencer ao outro mundo, outro enquadramento mental. "A última vez que vi o 'Nelken' chorei do princípio ao fi m", diz Olga Roriz.

A coreógrafa lembra-se de ver Dominique Mercy (dança com Pina Bausch desde 1974 e vem dançar "Café Müller" a Lisboa), actuar com o Ballet-Théâtre Contemporain, numa peça de que não se lembra do nome, no Teatro Nacional de São Carlos, teria ele "talvez 19 anos". "Lembrome perfeitamente daqueles cabelos loiros muito esticados. Até tenho um autógrafo dele dessa altura. Hoje, ver estes homens e mulheres já velhos, dá a sensação de que aquilo já não vai durar muito. É muito forte." Hoje Pina Bausch tem 67 anos, quase 68. Podemos perguntar quantas oportunidades mais haverá para a ver dançar "Café Müller". É o mesmo que perguntar quantas oportunidades mais haverá para a ver dançar. "A contemporaneidade", diz José Sasportes, "está no nosso olhar".

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