Quem Não Sabe o Código, Não Entra

Vale a pena procurar o código do filme de Michael Haneke. Em "Código Desconhecido", o realizador austríaco prossegue a sua "auto-reflexão" sobre o cinema. E, como sempre, os espectadores entram no jogo. Ou não.

Pode-se dizê-lo: à força de querer confrontar o modelo dominante, Michael Haneke formulou o seu próprio dogmatismo. Isto é, o tom programático da sua filmografia, propondo o apagamento da diferenciação entre realidade e representação, acabou por valer-lhe a reputação de ideólogo moralista com tendência para castigar os espectadores que entram no jogo auto-ilusório daquilo a que chama o "cinema-distracção".

"Benny's Video" (1992) era um ensaio totalitário sobre o poder das imagens, em que uma família via o seu sentido moral ser diluído pelo vídeo; "Brincadeiras Perigosas" (1997), o único filme do realizador austríaco estreado comercialmente em Portugal, era um título que descrevia, ao mesmo tempo, o sádico "thriller" psicológico em que dois jovens torturavam uma família até à morte apenas por prazer, e a defraudação das expectativas da assistência, convocada para a cumplicidade com o que se estava a passar no ecrã (vejam-se as frequentes piscadelas de olho para a câmara de um dos jovens e o seu confronto com os espectadores).

Cinema do engano. "Código Desconhecido", o primeiro filme "francês" do cineasta austríaco (que há duas semanas venceu o Prémio do Júri de Cannes pelo seu mais recente "Le Pianiste", que valeu ainda a Isabelle Huppert e Benoît Magimel os de melhor interpretação), recoloca muitas das questões que o realizador tem vindo a suscitar na sua proclamada "auto-reflexão" sobre o cinema. Por isso, é natural que seja encarado como mais um exercício moralista sobre os jogos de representação.

Não é tanto assim, até porque Haneke busca a tal "margem de indefinição" de que Robert Bresson falava em "Notes sur le Cinematographe": "Não se deve mostrar todos os lados das coisas". Haneke adopta o mandamento - mais do que procurar respostas, a sua intenção é questionar -, cedendo ao filme uma estrutura fragmentária (de novo, Bresson: "A fragmentação é indispensável para não cairmos na representação"), comum, aliás, a "71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso", de 1994, em que todas as personagens convergiam para uma espécie de apocalipse final.

No entanto, em "Código Desconhecido" - sub-intitulado "Narração incompleta de vários percursos" -, o andamento é inverso. O filme abre num prodigioso plano-sequência de nove minutos, seguindo Anne (Juliette Binoche) por um "boulevard" parisiense. É nesse longo travelling que as várias narrativas paralelas se interligam.

Não é mais do que a metodologia habitual nos filmes em tríptico: um episódio fortuito faz coincidir todas as histórias, mas enquanto a regra estabelece que se sigam as narrativas em separado até ao momento em que se cruzam, "Código Desconhecido" vira essa lógica do avesso.

Neste caso, o incidente resume-se à compra de um "croissant": Anne sai de casa e encontra Jean, irmão de Georges, seu companheiro ausente, que lhe pede para ficar em sua casa. "O código da vossa porta não é o mesmo", diz-lhe Jean. Separam-se, a câmara recua, acompanhando Jean de volta ao apartamento, mas atira o papel do "croissant" a uma mendiga, que é defendida por um jovem de origem africana. A partir daqui, o filme evolui para a tal "narração incompleta de vários percursos", seguindo as personagens isoladamente, alicerçada numa montagem devedora da Nouvelle Vague: frases deixadas em suspenso, cortes abruptos, pontuados por breves raccords de ecrã a negro.

O que resulta é um mosaico multicultural que reflecte as velhas preocupações de Haneke - a incapacidade de comunicação - e que o realizador inscreve na própria experiência de visionamento do filme: como no princípio, o filme encerra com crianças surdas-mudas comunicando entre si, sem oferecer qualquer tradução aos espectadores. Trata-se, afinal, da súmula do filme: quem não conhece o código, não entra.

Ou, por outro, o código pode ser alterado inadvertidamente: em "Código Desconhecido", Haneke prolonga a sua argumentação sobre a percepção dos espectadores e a forma como nos habituámos a aceitar como "realistas" os modelos narrativos do cinema dominante, devolvendo-nos o seu sentido manipulatório. Mais do que propor um realismo alternativo, Haneke expõe um cinema do engano - as cenas de rodagem do filme de Anne são incorporadas de forma a que não se perceba se se trata de realidade ou representação -, não para restabelecer "a verdade", mas para demonstrar a sua volubilidade.

Pelo seu carácter "laboratorial", é tentador acusar "Código Desconhecido" de pretensiosismo, dada a sua própria tese sobre a natureza ilusória das imagens. Seria um erro: talvez seja mais legítimo perguntar se um filme assim não fará todo o sentido à luz da actual paisagem mediática. E talvez se descubra que "Código Desconhecido" é um dos filmes mais estimulantes e provocadores dos últimos tempos.

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