Molière a preto-e-branco e com as palavras todas

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Jorge Pinto chegou à idade de fazer o Avarento. O desafio partiu de Rogério de Carvalho. Todo o espaço ao teatro da palavra

Quando, no Teatro Carlos Alberto (TECA), as luzes se acendem, desvenda-se um cenário despojado e minimalista, quase diríamos "avarento" de adereços: um largo tapete feito de uma manta de retalhos coloridos apenas marginado por quatro bancos e cadeiras nos cantos. Todo o espaço à palavra e ao jogo da representação, portanto. Ao teatro da palavra, como sabemos que é o teatro de Molière (1622-1673). "O Avarento", texto de 1668, é a nova produção do Ensemble - Sociedade de Actores, que hoje sobe à cena no TeCA, numa encenação de Rogério de Carvalho.

As primeiras personagens em cena são Elisa (Vânia Mendes), filha do dono da casa, e Valério (Miguel Eloy), o criado por quem ela se mostra apaixonada. Surge depois Cleanto (Pedro Galiza), o outro filho, mas depressa perceberemos que todos dependem - e jogam o seu presente e futuro - da avareza doentia, irreparável, do velho pai (Jorge Pinto).

O Avarento é uma das grandes figuras da galeria do teatro clássico universal. Um actor só chega lá, normalmente, na curva mais madura da carreira. Não apenas pela idade da personagem, mas pela sua exigência de representação e de credibilidade também física.

A decisão de o Ensemble produzir agora esta peça decorreu do desafio lançado pelo encenador Rogério de Carvalho ao grupo e, em particular, a Jorge Pinto. "Estás na idade de fazeres o Avarento", disse-lhe o encenador, no final da carreira de "O Cerejal", a peça de Tchekov que anteriormente tinha feito com o Ensemble, em 2007 - quase duas décadas passadas sobre a primeira parceria de ambos, curiosamente com o mesmo texto de Tchekov, "O Jardim das Cerejeiras".

Jorge Pinto explica, contudo, que não é só a idade que lhe permitiu chegar agora a esta figura. "É também um determinado estádio de preparação, e ainda a nossa relação com o encenador", explica. E avança que o maior desafio que se lhe deparou ao encarnar o Avarento foi lutar contra o arquétipo que acompanha estas personagens do grande teatro do mundo. "Eu vi o ‘Avarento', pela primeira vez, na Comédie Française, quando tinha 15 anos, e fiquei convencido de que era ‘assim' que se fazia. Depois aprendemos na escola que é ‘assim' que se faz, depois vemos outra interpretação e é ‘assim'...", diz Jorge Pinto, para quem o principal desafio é mesmo evitar "fazer arqueologia".

Com este "Avarento", Rogério de Carvalho e o Ensemble quiseram fazer teatro clássico e mostrar que a sua perenidade decorre da profundidade com que ele aborda temas e traços bem característicos da natureza humana. E isso passa também muito pela aposta na tradução. Como faz habitualmente, o Ensemble encomendou uma tradução actual do texto de Molière, e dela ocupou-se Alexandra Moreira da Silva, que "fez um trabalho belíssimo", e que teve o cuidado de adequar as palavras "aos actores que as iam interpretar", nota Emília Silvestre.

Outra marca deste "Avarento" é a aposta em figurinos a preto-e-branco (o protagonista veste sempre de branco). Uma simplicidade cromática que tem também por objectivo não distrair o espectador do essencial: "Trata-se de uma história trágica e sem final feliz em volta de uma personagem doentia, que põe o dinheiro acima de tudo, dos filhos, da família, das relações afectivas", diz a actriz que interpreta a personagem de Frosina, a alcoviteira.

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