Lisboetas

Lisboa, não se passa nada. Já disse, já “cantei”, já escrevi sobre isso um bom número de vezes. Não escolhi viver em Lisboa, foi o contrário: Lisboa reconheceu em mim características que me fariam um bom lisboeta. E que características são essas?, perguntam-me os cépticos, os que não acreditam que para cada homem existe uma cidade à sua medida. Há cidades que se revelam, sedutoras e enigmáticas, outras, por sua vez, tímidas e recatadas, crescem em nós.

Quero com isso dizer que todas têm algo para nos dar, mesmo que não seja o que mais precisamos naquele momento das nossas vidas. Hoje, quando olho para trás, não consigo deixar de me espantar – como éramos provincianos, Lisa! Hoje conseguimos disfarçar melhor. Lembram-se de como, naquela altura, bastava cruzar a Rua da Misericórdia até à Rua da Atalaia para que um sujeito ficasse a par das decisões da Câmara Municipal, do Ministério da Cultura e do que se discutia à porta fechada em São Bento? Arrotava-se e bocejava-se com a mesma satisfação os rissóis de camarão da Matilde, a amarguinha do Estádio e as possibilidades infinitas do crédito bonificado e os subsídios da União Europeia que nos tornariam exactamente isso, mais europeus. Assim era a velha Lisboa que me abriu os braços, rechonchuda e de uma inocência romântica, que já não sente mais. Hoje é diferente, corre à beira do Tejo, faz dieta, faz ioga e vai para a cama cedo.

Eu descobri a cidade pelas mãos dos residentes e de frequentadores assíduos do emblemático Bairro Alto. Numa altura em que já me falavam de um “antigamente é que era bom”, nas muitas e informais visitas guiadas pela madrugada adentro, foi-me revelado o mapa afectivo daquele lugar, os espaços e os personagens que lhes deram vida, verdadeiros heróis de um bairro quase fantasma. Hoje, só lhe sobra a fama e uma saudade dor de siso, quando o visitamos e nos cai a ficha: o Bairro, coitado, só acorda nas noites de sexta e sábado, no Santo António e nas vésperas de feriado. Hoje, impacientes com sei lá o quê, envelhecidos, e com bebés para amamentar, deixamo-nos afundar no sofá da sala, controlo remoto na mão, televisão ligada e de costas voltadas para a cidade.

Não foi há muito tempo, a cidade saiu para a rua, passou por mim, irada, a caminho da Avenida da Liberdade. Chamei-a, não me ouviu, gritava que lhe faltava isto e aquilo, que só lhe restava emigrar, para o Brasil, para Angola, para a Europa, para o raio que a parta, para qualquer lugar, menos este. E diante desse desabafo, pergunto-me em que momento deixámos que a nossa pequena aldeia, do alto da colina da São Roque, da freguesia da Encarnação, desaparecesse? Eu, que ainda não me livrei do rótulo de imigrante, posso afirmar com segurança: só regressa a casa quem mantém vivo o sentimento de pertença e, como as cidades são as pessoas que as fazem, não me canso de dizer que o que mais sinto falta em Lisboa não são espaços culturais ou grandes projectos arquitectónicos, sinto falta dos de cá, os lisboetas. Onde estão os lisboetas.

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