Eu estou aqui

1. É num destes dias de chuva interminável em Lisboa. Venho de Santos para o Cais do Sodré junto ao rio, passando armazéns e restaurantes fechados, aquela desolação das traseiras das coisas quando chove, e rajadas de partir guarda-chuvas do chinês. Então, ao dobrar o último edifício antes da estação de barcos, há uma família encolhida por baixo de um vão, pai, mãe, crianças, adolescentes. Estão sentados, todos de frente para mim, tão imóveis e de frente como se eu estivesse a tirar-lhes uma fotografia. Não parecem ter sido apanhados de surpresa a meio de um passeio, até porque chove há dias. No instante em que nos cruzamos penso que devem morar ali, no vão. É um instante apenas: acabo de dobrar a esquina, a irradiação dos corpos faz-me voltar a cabeça para a esquerda, os nossos olhares coincidem, o filme pára por segundos. Depois eu sou aquela que continua, com o seu guarda-chuva e a sua vida, e eles são aqueles que ficam para trás.

2. Na vez seguinte que caminho entre Santos e o Cais do Sodré continua a chover, e ao dobrar a esquina do último edifício antes da estação de barcos olho para a esquerda sem esperar a irradiação, mas o vão está deserto. É a porta de uma garagem, reparo agora. Há um carro estacionado em frente, graffiti nos muros em volta, ao lado um barco chamado ANAUM. Creio que já o vi numa fotografia que uma amiga chamada Ana pôs no Facebook há tempos. Mas talvez haja dois ANAUM, e o da fotografia dela fosse o outro. Não me lembro de o ver no dia em que a família estava aqui. Mas que faz um barco a seco aqui? Do lado de lá do barco, reparo, há outro vão, e um graffiti na parede branca a dizer: EU ESTOU AQUI, com uma seta a apontar para baixo. Olho para baixo: um rodilho de cobertores molhados. Quem está aqui de momento não está. Mas entrando pelo vão há uma grade, e do lado de lá uma espécie de armazém cheio de tábuas. Aproximo-me, vejo um homem, ele sorri, aproxima-se, eu digo bom dia, ele diz, bom dia minha menina. É como se ele viesse do passado, ou eu viesse do futuro, e nos encontrássemos numa fábula.

3. Pode entrar, minha menina, diz o gentil homem, abrindo a grade. Vejo então que o que parecia uma carpintaria é mais exactamente um estaleiro, dominado por um interminável casco de cedro. Que lugar é este, pergunto, é da federação portuguesa de remo, diz o homem, mas antes era o mercado do peixe. Antes, quer dizer muitos anos antes, quando veio para cá. Então não é de Lisboa, pergunto, e ele diz que não, que é lá de cima, de Resende, mas foi para Angola moço, ia para trabalhar na construção civil e foi dar num grande estaleiro na Ilha de Luanda, quando deu por si era dom natural, os barcos saíam-lhe das mãos, pouco tardou e era o mestre do lugar. Até que veio a Independência, e, diz ele, já não dava, já não dava, como agora também não dá. Não entra em detalhes e eu não peço. Acrescenta só, a gente antes andava à vontade, e depois já não dava. Veio para Alcântara em 1975, continuou a fazer barcos. É coisa que não se acaba, enquanto houver mar.

4. As aparas de madeira estalam sob os pés. Não há mais ninguém no estaleiro, Mestre Fernando trabalha sozinho e muito, apesar de reformado. Quando lhe pergunto o nome, pergunto também se posso contar a história dele. Ele diz, claro, minha menina, diz-me que já apareceu até na televisão, mostra-me um placard na parede, onde pinups (mais vestidas que despidas) se misturam com fotografias de barcos em vários estádios de evolução e um recorte de jornal que é um perfil de página inteira de Mestre Fernando (na secção de Desporto, mas não consigo perceber que jornal, coisa antiga, já).

5. Que o casco é de cedro sei porque Mestre Fernando me diz, e cedro do Brasil. Coisa para 14 metros e meio de uma ponta a outra, não sei se estão a ver, oito remadores mais um ao comando. Tabuinhas cortadas, moldadas, polidas, soldadas, para água nenhuma entrar, trabalho para várias máquinas e um só homem. Eu toco estes instrumentos todos, diz Mestre Fernando abarcando o estaleiro, máquinas, tábuas, ferramentas e tudo. Isto, em reformado. Homem de família, mulher e dois filhos, sim, mostra-me até fotografias antigas, desde Luanda a Alcântara. Moram numa casinha que a federação deu. Mas Mestre Fernando continua a vir fazer barcos para aqui, nas traseiras de Lisboa, aqui para onde ninguém está a olhar.

6. Por isso é que vem para aqui quem estraga o postal da fachada. Há dias passei e havia uma família, digo eu a Mestre Fernando. Ele espanta-se, uma família?, não dei por nada, devia ser da chuva, quem mora ali é um rapaz de cor com uma rapariga muito branca, e debaixo do barco também há quem durma. E a pessoa que mora aqui mesmo à porta, a tal que escreveu EU ESTOU AQUI. Ah, isso foi porque o pisaram, responde Mestre Fernando. Um funcionário da câmara vinha a andar, não reparou e pisou-o. Então ele resolveu escrever na parede o aviso. Está ali há meses, diz Mestre Fernando, tem uma barba, trazem-lhe comida, aquelas pessoas que tratam dos sem-abrigo. Qualquer coisa nele é peremptória, porque não só escreveu a declaração na parede como decidiu que Fernando se chama Manuel. Mestre Fernando não sabe porquê, é assim.

7. Quando saio reparo nas roupas penduradas à chuva, jeans de homem magro. É uma tristeza porque aqui chove, diz Mestre Fernando, e a cara dele diz a mesma coisa que a voz. Não sei o que este homem fez em Angola, não sei o que este homem fez, mas a cara dele diz a mesma coisa que a voz.     

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dr

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