Belíssima vida

Há em Ourém uma localidade chamada Mulher Morta. Minha Senhora Aparecida. A Carmen Zita Ferreira diz: o meu cunhado nasceu na Mulher Morta. Maestro de orquestra. Um homem normal. Ela apontava para um dos lados da paisagem indicando onde fica tal freguesia, igual a estarmos a ver para outra dimensão, para dentro da porta de Alice. Nos torreões adiante do Paço do Conde morrer é fácil. Os varandins baixos, a queda alta, pouco apoio, despencar é quase uma tentação. A impressionante cidade medieval é uma realidade para heróis. Pergunto-me se podemos cair dali e virar cidadãos da Mulher Morta. Reaparecer como outros vivos. Vivos diferentes. A Carmen garante-me que já subiu aquilo vestida de noiva. Faz-se assim. Vão os casados bater uma fotografia naquela nesga de varanda voadora.

Põe-se à vista Ourém para um lado e para o outro da cidade medieval. Vê-se tudo daqueles lugares altos. Percebemos bem como se faria ali uma batalha e como estaria protegido o nobre senhor no sobranceiro castelo. Há qualquer coisa que pede o ataque, para se poder orgulhar da defesa que faz. Passam almas guerreiras pelo ar que respiramos. A memória é toda feita de susto. A beleza medieval assombra.

Na cripta da Igreja Matriz de Ourém encontramos a belíssima morte de Dom Afonso. Metido numa arca de mármore imaculado, branco, como apenas um suspiro de cor no também branco compartimento. Uma cave de alvura intensa metida terra abaixo, como se a levar o céu mais pálido para o fundo. Uma lâmina de luz que se guardasse no chão. Presa no chão. A belíssima morte de Dom Afonso, Conde de Ourém, tem o aspecto de um crochet feito na pedra, como se a pedra fosse leve, fiada, passada por uma agulha entre linhos que se bordassem também. A morte de Dom Afonso não tem fantasma. É limpa.

De todo o modo, havia um fantasma na Matriz, numa das capelas escuras. Imitava um desumidificador. Um som contínuo de pequeno motor respirando. Era um fantasma a dormir, se está certo que a morte é um sono eterno. Ressonava. Deixámo-nos um bocado de tempo a auscultar o escuro. Não havia nenhum desumidificador. Fiquei espantado com a especificidade de um fantasma escolher imitar uma coisa assim para não ser apanhado por quem por ali passa.

À porta lateral da Matriz, daquele lado da cripta, seguem as olaias em fila. Os troncos dobrando como fustigados pelo vento, as flores púrpura ao fim do dia, um vinho de pétalas nos ramos. Sangue de festa. Devem ter roubado o ruborizado de Dom Afonso para se pigmentarem. Ou, então, são estranhas clientes das ginjinhas. Talvez deitem os troncos ensonadas, talvez sorrindo. Eu acho que as olaias dobram os troncos porque preferem espreitar para dentro das casas. Ficam ansiosas por saber o que vai na pousada. Alguém me confessa que considera as ginjinhas de Ourém muito melhores do que as de Óbidos. Explicam-me que as sortes mais discretas de Ourém têm que ver com o estarmos tão ao pé de Fátima e comparecerem por ali sobretudo peregrinos que pouco querem ver castelos ou olaias. Os que chegam e se sentam, com um pastel de nata e uma ginjinha, talvez já não voltem a rezar como antes.

Conta-se em Ourém que ao povo dali se lhe tiram os castelos da vista tiram-lhe tudo. Alude-se assim às saudades. Juntam o verdadeiro castelo ao Paço do Conde e as pessoas generalizam dizendo: os castelos. E, quando partem para Paris ou Londres, não é a mesma coisa verem pontas de torres de ferro ou de arranha-céus. O ouriense pode refilar desagradado com tudo mas haverá sempre de voltar. Tem cordas no coração. Em Ourém mede-se o mundo pela circular da cidade medieval, que foi subir aquela montanha para estender o reino como manto descendo, igual a uma saia, em redor. Percebo bem a força de se espreitar o dia para aquelas alturas. A luz, o sol, o nevoeiro, o descido das nuvens, as chuvas, tudo acontece primeiro nos castelos. A população lá em baixo assiste à cidade medieval igual a continuar vendo um guerreiro colocado adiante de todos. Alguém que se pôs de avanço e bem levantado para cuidar de defender os outros de más ideias da terra e do céu. Deve dar direito a uma belíssima vida. Há por ali modo de se colocar na vida um foco de intensa e muito simbólica beleza. Terras assim fazem livros. Têm livros à espera.     

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