A revolução está na praia

Uma corrida, delirante e caótica, pelo espírito e pelas memórias da nouvelle vague

Cinco minutos de filme e já houve três citações muito directas do Acossado de Godard, incluindo, na mais óbvia de todas, a primeira aparição da “rapariga do 14 de Julho”, a apregoar um jornal (não o Herald Tribune, antes algo mais apropriadamente “revolucionário”) na zona dos Champs Elysées. A este ritmo, pensamos, a coisa vai ser imparável. E de certa maneira é, para o melhor e para o pior: primeira longa-metragem de Antonin Peretjatko, é uma corrida, delirante e caótica, pelo espírito e pelas memórias da nouvelle vague, cruzada com um fundo político que nem por se manifestar através duma espécie de burlesco deixa de ter, nas suas implicações, uma ressonância inconfundivelmente contemporânea. Mal comparado, ou muito bem comparado, é como se Peretjatko diluísse um Godard da fase “maoísta” (com as suas personagens cheias de empenho político) nas águas do Adieu Philippine de Rozier (com os seus rapazes e raparigas em bailes e banhos de mar) e a temperasse com a anarquia, também cinematográfica, de tudo o que está entre uma coisa e outra - que, ao fim e ao cabo, é mesmo toda a nouvelle vague.

O signo é o da Revolução Francesa, portanto. Mas o tempo é de “crise”: uma crise tão grande que obrigou ao regresso de Sarkozy à presidência, e mais drasticamente ainda forçou a decisão de acabar com as férias, passando a rentrée de Setembro para o princípio de Agosto (felizmente este é o tipo de filme que os nossos políticos não vão ver, havia gente para se entusiasmar com a ideia). O mal disto tudo, claro, foi a Revolução Francesa, diz um jovem apinocado que ao longo do filme só voltará a aparecer para ser metódica e progressivamente guilhotinado - primeiro um dedo, depois um braço, e finalmente, apogeu, a cabeça ela própria. Este absurdo político, no entanto suficientemente venenoso para não ser inócuo (há um pouco de Guiraudie nisto tudo, também), paira como nuvem pelo filme, dá-lhe um ambiente quase “fc” (o regresso em massa dos veraneantes), mas nunca se sobrepõe à doce anarquia do grupo de protagonistas nem ao seu movimento. Movimento em direcção à praia, claro, como bons preguiçosos socialmente “inúteis” (um dos rapazes é um falso médico) e em direcção, os rapazes e as raparigas, uns aos outros. Em ambos os casos, o caminho não é linear, e as aventuras da viagem - os percalços, os non sequitur, o variado parque automóvel (Peretjatko pensava obviamente no Weekend) - alimentam o centro do filme.

A virtude de A Rapariga de 14 de Julho está em conseguir sustentar toda esta loucura, para não dizer todo este disparate, durante dois terços da sua duração. No último terço o filme cai um bocadinho, um pouco antes da chegada à praia. Ou porque Peretjakto não consegue aguentar o filme lá em cima, naquele persistente avanço entre picos de euforia; ou porque o espectador se cansa e onde até aí tinha visto graça começa a ver só uma forma de agitação um tanto pesada, como um esgar, que passa ao lado da cortina de melancolia que, com a chegada à praia, o realizador dá mostras de pretender fazer abater sobre o filme. E em vez dessa melancolia, clara mesmo fica só a razoável inconsequência em que A Rapariga de 14 de Julho finalmente se decompõe.

Mas até lá chegar, Peretjakto conduz o filme com um vigor, uma frescura e uma irreverência que vão muito para além da matéria de citação. E que passam, também muito, pelos actores, sejam os rapazes, agitados e vorazes como se fossem filhos de Léaud e netos de Michel Simon, sejam as raparigas, sobretudo a protagonista, Vimala Pons (uma artista de circo, descobrimos na internet, que já esteve nas 36 Vistas do Monte Saint-Loup de Rivette), de físico e leveza perfeitamente à altura das nanas da nouvelle vague, e a quem Peretjakto pede que, para alem da efígie (cena no museu ainda no início, et pour cause), faça o mesmo que elas faziam: que se passeie e que pose, ora de sorriso ora de beicinho, ora em modos de miuda “difícil” ora de “fácil”, sempre dentro dum vestido leve de verão que - muito ocasionalmente - será removido.

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