A pintura da insatisfação e da curiosidade

45 anos da obra plástica de Pedro Chorão estão em exposição em Lisboa.

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A contenção cromática, a atenção aos limites da tela, e o assumir da hesitação (do erro, dirão alguns) José Frade

O título escolhido para a grande exposição antológica de Pedro Chorão que decorre na Cordoaria Nacional e na Fundação Carmona e Costa é provocatório. É que de facto, se a pintura sempre quis dizer alguma coisa, ela disse-o e di-lo em primeiro lugar numa linguagem que não é nem verbal nem escrita, nem sequer corporal. Ou seja, a linguagem da pintura está muito distante daquela que usamos todos os dias para comunicar uns com os outros. O artista, que não gosta de falar do que faz, afirma num texto inserido no belíssimo livro que acompanha esta antológica que o seu trabalho é pessoal e íntimo, tão pessoal e íntimo que o deixa em permanente perplexidade. E isto porque não chega nunca ao resultado que queria. Desta insatisfação nasce a curiosidade pelo que virá a seguir, pelo próximo quadro que pintar. No fundo, são estas as palavras que definem o seu processo de trabalho, mesmo sabendo o artista que esse trabalho estará sempre além de tudo o que possamos dizer dele.

Na Cordoaria Nacional, onde o espaço é amplo e se divide por dois pisos, o curador da exposição, José Luís Porfírio, escolheu mostrar sobretudo pintura. E isto porque algumas obras que aqui se apresentam são realizadas em papel, o que as aproxima do conceito contemporâneo do desenho. Há além disso uma série de fotografias sobre paredes pintadas no Alentejo, uma série intitulada Superfícies — Olhar(es) sobre o Alentejo onde os motivos e enquadramentos escolhidos reflectem bem algumas obsessões do pintor com as ortogonais estruturantes da pintura e o trabalho da cor neutra, ou quase neutra, na superfície. Estas imagens completam bem a pintura omnipresente e não colidem nunca com ela, apesar da natureza representativa da fotografia, que é de génese contrária à da grande maioria das telas deste pintor.

Conta-nos Pedro Chorão que estudava biologia marítima em Liverpool na década de 60 quando descobriu a vocação para a pintura. Esta chegou-lhe primeiro através das imagens da Pop britânica — de Peter Blake, por exemplo — e depois, o que é raro, pelos estudos em história da arte feitos em Paris nos anos seguintes. A guerra, primeiro, e o curso de Pintura na ESBAL, logo em seguida, condicionaram uma prática do trabalho do pintor que se definiu desde o início como exaustiva e exigente. Da Pop, passou para Braque — e essa tutela do cubismo analítico francês encontramo-la nas peças mais antigas aqui expostas, onde as tonalidades quentes e escuras se combinam por vezes com o trabalho da colagem de formas abstractas sobre suportes planos. Por essa época, conhece António Dacosta em Paris que, segundo nos conta, o ensinou a ver pintura. Essas lições passavam já na altura por uma chamada de atenção e pouco mais: “olha aqui”, porque, lá está, a linguagem da pintura passa por outras vias.

Considerando a totalidade da obra pictórica deste artista, podemos dizer que ela passa sempre por duas ou três vias normativas que se assumem como constantes: a contenção cromática, a atenção aos limites da tela ou do papel, e o assumir da hesitação (do erro, dirão alguns) através da visibilidade dada ao trabalho da mão. Passamos de uma abordagem cronológica nas salas de entrada para uma outra, preferencialmente temática, que antes de explodir em tonalidades ora azuis, ora cinza nos trabalhos do primeiro piso se vai declinando em trabalhos que tratam serialmente um signo ou conjunto de signos visuais distintos. Arcos e colunas, naturezas mortas, letrismos, um triângulo que é também uma recordação longínqua da visita às pirâmides egípcias, e a presença pontual de uma horizontal que é fundadora da paisagem — nada disto nos prepara para as convocações de outras memórias, que confluem numa luminosidade meridional (as viagens a Marrocos, ou as paredes do Alentejo, de novo) ou mesmo, quem sabe, da infância: “Jogar à macaca à chuva no pátio da quinta”, por exemplo, é um puzzle de signos e de sinais só decifráveis por quem os faz, um pouco como as histórias que povoam as naturezas-mortas da última sala, a que contém os trabalhos mais recentes de Pedro Chorão.

Na Fundação Carmona e Costa os desenhos não se desviam obviamente desta grelha de referências, encontros e achados que subjaz a toda a obra do artista. Se tivéssemos obrigatoriamente que escolher algum núcleo, seria o das colagens com papéis de toda a espécie, por vezes aproveitados de desconhecidos arquivos, e que por isso possuem uma qualidade gráfica e plástica a que a sensibilidade de Chorão já nos provou não ser indiferente. Combinados com escorridos e aplicações contidas de tinta, convocam essa já distante admiração pelas práticas cubistas que conseguiram transformar, também por meio da colagem, a ilusão da tridimensionalidade em bidimensionalidade. Se hoje é difícil encontrar um artista que se assuma tão corajosamente numa linhagem artística radicada na história, também é porque Pedro Chorão, avesso a mundanidades inúteis, se assume completamente como um artista marginal. O que não significa à margem: a arte contemporânea portuguesa tem obrigatoriamente de contar com ele.

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José Frade
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