A maldição secreta

Três contos realistas e fantásticos, por uma das grandes estilistas portuguesas.

Há duas décadas que Teresa Veiga vem publicando ficção de um apuro estilístico e uma subtileza notáveis. É o que acontece uma vez mais com "Uma Aventura Secreta do Marquês de Bradomín", colectânea de três contos longos. O texto que dá nome ao livro é uma noveleta que presta homenagem a Valle-Inclán. Tudo parte de uma investigação acerca de um tal marquês de Bradomín, soldado, político e cortesão da época das guerras carlistas. O aristocrata deixou umas Memórias em três volumes, que fazem dele um aventureiro algures entre Casanova e d'Annunzio. Um conspirador que é também um hedonista sofisticado, amante da arte florentina e dos moralistas franceses. O narrador do conto decide no entanto completar algumas lacunas das Memórias. Conhece uma anciã que terá sido amante do marquês, quando ele se refugiou no Minho em casa de uns vagos parentes, e recorre a ela para a sua pesquisa. Se o marquês nos foi apresentado por causa da sua autobiografia, o retrato é completado através de uma carta dessa tal senhora. Ou seja: tudo é reconstituído através de textos, e portanto o passado é aqui um exercício de interpretação textual. Teresa Veiga exibe uma pujante imaginação romanesca, sobretudo na evocação dessa estada do marquês na casa minhota, e no ambiente de sedução em que enreda aquela família. O clima é permanentemente sexual, ou pelo menos perverso, em conversas explícitas sobre a reprodução das plantas ou numa portentosa "soirée" teatral em que surgem Comba e Luís, os dois gémeos perigosos: "É certo que eles continuaram a crescer em tamanho, beleza e inteligência, mas não era preciso muito tempo de convivência para percebermos como essas qualidades estavam mal aproveitadas. A sua alegria tornou-se estouvada e brutal, a sisudez, que também os caracterizava, um conluio de perfídias sussurradas e atitudes negligentes, preferiam Pepa e os outros criados a companhias mais exigentes e, sem razões para se apurar no vestuário e nas maneiras, poupavam nos bolsos dos meus pais mas deterioravam-se também, como acontece às mercadorias mal embaladas" (pág. 105). Tudo o que parecia idílico e aventuroso é afinal um jogo de sombras que se precipita num desenlace fatal. A segunda narradora ainda conta que deu "uma hipótese a Deus de emendar a mão"; mas isto são mistérios profanos, coisas secretas que vêm ao de cima em ambientes elegantes e que destroem vidas. As Memórias do marquês, essas, ficam intactas.Já o conto que abre a colectânea, "As Parcas", começava de forma enganadora, como se fosse uma plácida narrativa oitocentista sobre existências burguesas. Mesmo os episódios pícaros (um postal obsceno que nunca sabemos o que contém) pareciam entretenimentos de gente enfadada. Mas depois a protagonista, uma viúva, vai espairecer com a sua filha solteira, e no meio de esplêndidas cenas madrilenas visitam o Prado e vêem Goya e Velázquez.A partir daí, a narrativa muda, porque nos quadros a viúva vai encontrando a chave da sua vida. A própria rapariga fica perturbada com o enigma do que viu. Aos poucos, entendemos que aquelas duas mulheres são infernizadas por outras duas, as criadas silenciosas e pérfidas que vivem com elas: "E de repente percebeu de onde lhe vinha a impressão de que fora apanhada numa teia, a razão por que aquele horror tinha ao mesmo tempo qualquer coisa de irónico e familiar. Eram elas, Clotilde, Lucinda e Albina, as temíveis Parcas, as horrorosas Parcas que vira no Museu do Prado e logo ali a tinham feito sentir-se mal sem perceber porquê. (...). E se as parcas de Goya voavam de noite na obscuridade enluarada, estas, ainda mais assustadoras, conviviam no mesmo plano com os mortais que queriam castigar e podiam ser vistas a tramar as suas maquinações em quartos bafientos, negras cozinhas, caves imundas" (pág. 49). Estas mulheres vivem laços de ciúme e apego, submissão e tirania. Como em Agustina, os homens são insignificantes ou velhacos, e a ideia parece ser expulsar tais homens deste universo opressivo ou então escolher homens obedientes; daí que o possível casamento da rapariga seja motivo de confrontos. E se a suspeita sussurra, a natureza grita, como nesses "fenómenos naturais calamitosos": a estranha mutação física das personagens segundo as circunstâncias, às vezes contrariando a lógica e a biologia. As mulheres de Teresa Veiga são com frequência artistas frustradas e sedutoras extemporâneas, gente condenada à infelicidade por ausência de malícia. E o terceiro conto, quase um pastiche de Poe, com um homem animalesco e um cadáver intacto numa cripta, encerra em chave explicitamente fantástica esse clima de maldição. É o passado como maldição, névoa que deixa tudo cair na mistificação ou no esquecimento.

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