A loucura da imaginação

A exposição de Jorge Queiroz não está completa, encerrada, terminada, indica um caminho que o espectador deve seguir para encontrar a pintura, o desenho, a obra.

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O título A múmia e o astronauta é indicativo desta loucura da imaginação em que Jorge Queiroz nos deixa Daniel Malhão

A exposição de Jorge Queiroz (n. Lisboa, 1966) é um mundo de possibilidades, de história, de figuras, de cores, de gestos, de tempos. E cada pintura ou desenho é uma potência inesgotável de sentido, de experiência, de sensação. E é-o não só porque o conjunto de obras apresentado é muito heterogéneo - pequenos e grandes formatos, pinturas e desenhos, diferentes cronologias (obras de 2010, 2012 e 2017), muitas linguagens a colidir, etc. - , mas também porque cada pintura ou desenho está em estado de permanente deriva. Ou seja, estas obras não estão completas, encerradas, terminadas, mas indicam um caminho que o espectador deve seguir para encontrar a pintura, o desenho, a obra.

A questão do espectador é intensa nesta exposição, não porque o artista desenvolva algum tipo de abordagem crítica à passividade do olhar ou ao modo contemporâneo de expor arte, mas porque estas obras são, fundamentalmente, situações pictóricas que incitam aquele que as vê a agir. Não se trata de dirigir acções, de dar instruções. Aqui agir é a condição de possibilidade destas obras: fica-se na situação da Alice de Lewis Caroll: quando guiada e incitada por seres tão estranhos como um coelho falante, conhece um mundo de metamorfose e de transformação em que nada é estável, em que tudo está em permanente estado de mudança, e ela, Alice, perdida num lugar desconhecido, sempre a ser surpreendida e confrontada com o impensável, o inimaginável, o inesperado.

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Daniel Malhão

Não quer dizer que só se possa chegar ao trabalho de Queiroz através das ideias de metamorfose e de metáfora. Quer dizer que o lugar a partir do qual esta exposição deve ser vista tem de ser um lugar que permita ao olhar transformar-se, dobrar-se, expandir-se. E a visão transforma-se, tal como o corpo de Alice se tem de transformar para poder viajar pela wonderland, graças a uma intensa actividade da imaginação daquele que, voluntariamente, salta para o interior destes universos pictóricos.

Estes universos plásticos, muito fantasiosos a lembrar os universos oníricos e de associação livre dos surrealistas, não só motivam o movimento (anímico, fantasioso e físico daquele que os contempla) como são eles mesmos lugares de movimento: contraem-se e expandem-se e as suas figuras e acções (as personagens das obras de Queiroz estão sempre a fazer alguma coisa) podem acontecer num grande plano, mas também num ponto pequeno, monádico, atómico.

São figuras irrequietas que umas vezes abrem a boca aos gritos, como que a chamar a atenção, e se passeiam pelas telas como se de um filme de tratasse. Outras escondem-se e nós, detectives impreparados, temos de as encontrar por entre as manchas, objectos e as muitas sombras. Outras ainda rebentam a tela e saem dos limites do quadro, da representação, da figura, numa espécie de processo de implosão e extrapolação de si mesmas.

O título A múmia e o astronauta é indicativo desta loucura da imaginação em que Jorge Queiroz nos deixa. Esta não é a loucura do alheamento, a sua forma é a da mania, a qual, segundo sugestão de Platão, é a matriz da sabedoria, forma primordial. E não se trata de uma fórmula poética, mas da constatação de que o saber só se constitui a partir da capacidade em imaginar o inimaginável, pensar o impensável, e o salto para esta região corresponde a um movimento da imaginação. E é a esta passagem para o inimaginável que Jorge Queiroz nos incita.

Não é uma exposição notável devido somente a esta loucura da imaginação. É uma exposição notável também porque as obras que a compõem revelam, na relação entre desenho e pintura, um raro saber da arte: os seus gestos são informados e as suas acções resultantes de um saber pouco comum do fazer, do ver e do perceber a pintura e o desenho. O pertinente não é que estas sejam obras de um virtuoso — ainda que Queiroz o seja —, mas que o virtuosismo esteja ao serviço da construção de um mundo que perde a sua linearidade espacial, temporal, causal, e no seu lugar se descubram lugares, personagens, formas, em actividade intensa que se dobram sobre si mesmas, assumem novas formas e constroem novas visualidades e experiências.

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