A dura lei da “visibilidade”

Numa crónica de título irónico, Portugal é um país de escritores ricos (PÚBLICO, 3/1/2016), protestava Alexandra Lucas Coelho (ALC) contra o hábito quase generalizado de não remunerar os escritores que “dão o seu tempo a Câmaras, bibliotecas, festivais, centros e demais instituições cada vez mais envolvidas na promoção da literatura”. O tema é pertinente e abrange um horizonte de questões interessantes. Mas para discuti-lo é preciso proceder à análise da condição do trabalho intelectual na nossa época. Se os escritores aceitassem, de modo generalizado, dar o seu tempo e trabalho em troca de nada, apenas para responder a solicitações em nome dos altos interesses da cultura e da literatura, eles acederiam a uma servidão voluntária. Ora, a aparente dádiva que eles consentem fazer, de maneira consciente, integra-se numa lógica do trabalho gratuito que não é o da servidão voluntária, mas está no centro da economia política da promessa. Em rigor, não há gratuitidade nenhuma, já que obtêm uma retribuição fundamental para a engrenagem da máquina produtiva de que fazem parte: a promessa, ou a aposta mascarada de promessa, de que auferem com o serviço prestado mais capital simbólico e esperança de rendimento. Nos termos da promessa, haverá lucros no futuro. O negócio que justifica e sustenta as instituições “envolvidas na promoção da literatura” (segundo o eufemismo de ALC) consiste precisamente em vender futuro, à boa maneira capitalista. A retribuição é feita com uma promessa directa ou indirecta. A promessa indirecta joga-se em torno de uma palavra mágica: “visibilidade”. Oferecer visibilidade,  propiciar o aparecimento e a assinatura, exibir e dar a conhecer: são estas as contrapartidas do trabalho e do tempo que os escritores parecem oferecer de maneira gratuita, mas que na verdade são investimentos na intensificação da sua luminosidade e existência. Formuladas na linguagem da economia política da promessa, estas questões parecem muito cruas e não se elevam aos altos desígnios que justificam os veementes protestos de ALC. Mas, intuitivamente, até o mais ingénuo vereador cultural compreendeu tudo. E todos nós, que nos movemos nestas áreas, temos a obrigação de saber que a condição a que estão sujeitos os escritores é exactamente a mesma a que estão sujeitos os outros trabalhadores intelectuais. Se não pudessem recorrer a um enorme volume de trabalho gratuito ou quase gratuito — sempre em nome de uma promessa, da miragem do futuro —, grande parte das universidades, dos jornais e das actividades editoriais seriam obrigados a fechar as portas. E de certeza que o presente protesto da escritora ALC poderia ter sido formulado no tempo e no espaço da jornalista ALC. Mas não foi, e seria uma outra conversa perceber os privilégios imaginários da condição de escritor. Hoje, grande parte dos escritores participa activamente na condição do trabalho intelectual na época neoliberal, mesmo quando o faz com relutância. Essa condição é a do “intelectual de si mesmo”, uma expressão cunhada pelo filósofo italiano Pier Aldo Rovatti. Trata-se da tradução no campo intelectual do refrão neoliberal que convida cada indivíduo a transformar-se em empreendedor de si mesmo (um “Eu, S.A.”). O marketing de si pertence a esta condição e às suas formas de visibilidade. Enquanto o escritor formado pelo modelo modernista repudiava tudo o que se aproximasse dessa condição, o escritor como intelectual de si mesmo tem de estar disponível para o trabalho gratuito em troca de uma promessa de visibilidade. Não pode é aspirar ao melhor dos dois mundos. 

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