A arte como aparência do mundo

Uma viagem pela obra de Francisco Tropa.

<i>Cinema</i> sintetiza as mais importantes questões do trabalho artístico de Francisco Tropa
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Cinema sintetiza as mais importantes questões do trabalho artístico de Francisco Tropa
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Cinema sintetiza as mais importantes questões do trabalho artístico de Francisco Tropa

O trabalho de Francisco Tropa (Lisboa, 1968) é sempre acompanhado por uma aura de encantamento. Não porque o artista faça uso de gestos de ilusionismo e procure efeitos mirabolantes através das suas obras, mas porque as imagens e as formas e que convoca provocam esse afecto no espectador. E é essa magia que é possível experimentar nas três exposições em Lisboa onde é possível ver actualmente obras deste artista.

Não se pode dizer que haja propriamente um denominador comum a uni-las. Pelo contrário, são propostas com contextos e ambições totalmente distintos, da Miragem de 2003 na Vera Cortês até ao filme, escultura e instalação Cinema, de 2016, na Appleton Square. No entanto, esta pouco ortodoxa viagem pelo trabalho de Francisco Tropa permite recuperar não só momentos muito significativos do seu trabalho, como mostrar que no caso deste artista as obras nunca são coisas fechadas, reificadas, completas, mas estão sempre sujeitas a um processo de permanente reconfiguração, reactualização ou, se se preferir, de energização. Esta ideia é fundamental: os trabalhos de Francisco Tropa não obedecem a nenhuma ideia de cronologia, mas designam lugares a que, livremente, o artista regressa, retomando, refazendo, recriando. Como se cada obra fosse o fragmento de uma grande obra (por vir, por fazer, por descobrir), de que o artista vai ensaiando novas versões e possibilidades de concretização. Por isso, percorrer estas três exposições não é percorrer um sucessão de momentos encerrados, mas um trabalho em permanente processo de reconfiguração e construção.

Cinema é um bom começo para esta viagem porque é uma intensa (e importante) síntese dos problemas do trabalho artístico de Tropa. Primeiro porque nos obriga a abandonar qualquer certeza de género: filme, escultura, pintura, instalação, esta obra pode ser enfrentada como se entender. Depois porque forma o seu próprio espaço de apresentação: a experiência de Cinema implica a criação de um espaço virtual que é o seu espaço de origem. Aqui, como quase sempre no trabalho deste artista, à relação com um espaço prefere-se a instauração de um plano virtualmente novo no qual habitam as suas imagens e os seus engenhos produtores de imagens. Mas o que é verdadeiramente decisivo é compreender que está em causa nestas duas “lanternas” um mecanismo — misterioso e mágico — que toma como elemento primordial a máquina humana, em muitos aspectos semelhante ao engenho criador divino, de produzir aparências. E que a aparência em Tropa tem uma gramática muito especial: não corresponde a imagens ilusórias que ocultam o mundo, mas, pelo contrário, a imagens que o fazem aparecer. Os cerca de 11 minutos deste filme devem ser entendidos não como uma ficção encantatória, mas como mecanismo revelador do mundo onde surgem as imagens primitivas da história da nossa visão.

Fazer aparecer o mundo podia ser o mote de todas as obras de Tropa. Como se o artista fosse a condição das mediações necessárias para a aparição do mundo. Se em Cinema isso acontece através das imagens em movimento nas paredes da galeria, nos seus Tesouros Submersos do Antigo Egipto da Colecção António Cachola, apresentados no Chiado 8, o mundo surge enquanto arte combinatória materializada em desenhos de areia. Trata-se de uma geometria escultórica que convoca duas ideias fundamentais para a narrativa cosmogónica constituída pela obra do artista: uma é relativa à precariedade e transitoriedade de toda a acção e humana, a outra é relativa ao poder humano da compreensão fixado enquanto ars combinatoria, ou seja, a ideia de que a complexidade do mundo pode ser reconduzida a uns poucos elementos originários. E é precisamente esta figuração do mundo que surge na Vera Cortês, onde todas as obras remetem para peculiares figurações cosmogónicas.

Nas cuidadas e pertinentes exposições no Chiado 8 e na Vera Cortês, as obras de Tropa entram em diálogo com outros artistas: no primeiro caso com a dupla João Maria Gusmão & Pedro Paiva, no segundo com a artista cipriota Haris Epaminonda. Diálogos estes que reforçam o modo como os dispositivos criados pelo escultor se destinam a activar um entendimento da arte enquanto aparência do mundo.

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