O Coração Ainda Bate. A minha temperatura

Inês Meneses escreve sobre o prazer de aprender no tempo certo.

Foi só uma frase. Às vezes uma frase pode mudar a trajectória dos nossos dias. Trazer-lhes um sobressalto.

A frase veio de uma amiga mais velha, com muita graça, uma mulher sem freio, que, enquanto pensa, já está a dizer... (talvez a idade precipite este impulso da língua destravada?): “Inês, não é nada sexy não saber nadar!”.

Não me lembro se ri ou se concordei. Devo ter feito tudo ao mesmo tempo, enquanto tentava disfarçar o incómodo que isto me trouxe: uma fraqueza, um destapar de muitas outras coisas. O prazer adiado. As memórias de uma infância onde isso nunca me impediu dos banhos que faziam tremer os dentes, a pele, e a vontade por mais. A água. Um medo grande e um contentamento maior. Histórias multiplicadas da infância, de colegas que tinham perdido os pais no mar, quando iam à pesca ganhar o dia seguinte. Mães viúvas para sempre. Lenços negros amarrados à cabeça. O poder do mar entre sargaceiras que o arrumavam, os beijinhos que eu apanhava, indolente, como se fossem trevos de quatro folhas. Chegar e ver a bandeira verde que nos fazia ficar. Entre o mar e eu, tanto respeito. Um receio que nunca se diluiu.

O primeiro trabalho que tive, antes da rádio, foi, aos 15 anos, numa ocupação dos tempos livres: fui seleccionada para zelar por uma piscina municipal. Para além da piscina, os balneários. Uma azáfama feita de humidade e visão turva pelo vapor. Não sabia nadar. Ainda não fazia mal. Só para mim. Ainda só era pouco sexy para mim.

Passaram-se anos, décadas. Férias, mares mansos e revoltos.

Ia muitas vezes com uma bóia gigante para dentro de água. O prazer que retirava disso, por me sentir aparentemente segura. Um dia, o mar arrastou-me para um sítio sem pé. Por mais que a bóia me segurasse, eu já tinha perdido o controlo. Gritei pelos meus amigos que estavam longe. Ninguém me ouvia. Foi, depois, o Marco, um rapaz que parecia o Tom Sawyer crescido, que me puxou. Acho que nunca mais usei a bóia.

Ser sexy é desafiar-me. Nem que seja para eu mostrar que sou sedutora a não ser sexy. Posso ser feroz numa teimosia dessas.

Fui aprender a nadar. Já levava umas aulas comigo, entretanto interrompidas por uma morte e uma gravidez. Já viram o ciclo da vida? A professora voltou com mais um filho, eu sem mãe, mas as duas com vontade de esperarmos uma pela outra.

Não só voltei à natação muito seriamente, como, pela primeira vez na vida, me vejo num ginásio entre gente anónima e muitos conhecidos. Nada disto é já um incómodo. Rio alto. Tento aproximar-me dos exercícios que alguns fazem bem. Depois desço aos balneários (que um dia arrumei) e dispo-me, visto o fato de banho, ponho a touca. Enfrento a piscina cheia de gente. Às vezes parece uma festa num cruzeiro com dezenas de velhotes felizes. Eu chego e sinto-me um deles. A música, de tão alta, quase faz ondas na água agitada. A aula deles acaba. A minha começa. Nas pistas laterais, homens de peito aparado lançam-se sensuais, como se aquele mergulho lhes validasse a masculinidade. Só os comecei a ver quando pus as lentes para a miopia.

Nessa altura também descobri que, lá de cima, do ginásio, me viam da passadeira. Posso boiar feliz ou atirar-me de frente cheia de medo, como se me chamassem de novo para o quadro a matemática. Saio da piscina triunfante. Entro de novo no balneário. Passo-me por outra água. Vou nua e sinto que tenho um corpo. Pela primeira vez tenho um corpo, não sou apenas cabeça e pensamento. O meu corpo húmido passeia-se pelo balneário indiferente a tudo. Agora que penso, bastou aquela frase, dizerem-me que não era nada sexy não saber nadar, para eu me atirar de frente para o que não sei e materializar os meus receios e retirar prazer disso. Sinto-me muito sexy nas minhas imperfeições todas e rio sobre todas as coisas. Sinto-me nova outra vez. Bastou uma frase.

É importante não adiarmos coisas pequenas ou grandes que queremos concretizar, mas cada um pressente o seu momento. Não entramos todos no mar ao mesmo tempo. A minha temperatura não é a tua. É crucial que o saibamos.

O coração ainda bate

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