A madrugada

Temos a possibilidade de ver uma tempestade terminar, vamos fazê-lo juntos. A mansidão da madrugada há-de ser proporcional à fúria da noite.

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Sempre tive a sensação de que aparecerias, disse a São ao Moisés, que voltarias. Ele contou-lhe ter emigrado para França logo após o casamento dela, tornando-se escritor, fazendo algum sucesso graças a essa propensão tão humana de acreditar num amor idílico (a São não lhe disse que eram os seus livros favoritos, não lhe disse que neles reconhecia a voz do autor). Regressava a Portugal, contou ele, com frequência, estive sempre próximo da Ana, (à São, pareceu-lhe escutar um vagido) desde a sua infância, fui seu amigo, sou seu amigo, estive sempre algures, por aqui e por lá, com os meus amores, de cá e de lá, os meus problemas, de cá e de lá, (a São ouviu outro vagido) gerindo a minha ausência e a minha presença o melhor que sabia, os desgostos e as alegrias, a vida é sempre muito complicada, mesmo quando gosta de se fazer de simplória. Abaixou-se, pegou na alcofa, retirou dela um bebé. A Ana, disse ele, isolou-se com o Eduardo numa casa de campo, o Eduardo estava muito doente, e ali ficaram até à sua morte, que aconteceu dois dias depois do parto, parecendo ter adiado o seu momento derradeiro só para ver nascer um filho que acreditava ser seu. Não era?, perguntou a São. O Moisés não respondeu. A Ana ligou-me, continuou ele, para que te trouxesse a bebé pois não se sentia emocionalmente capaz de lidar com a situação. Não sei para onde foi, mas sei que regressará. Toda a vida é isso mesmo, fomos expulsos do Jardim do Éden e tudo o resto é tentativa de regressar, não ao mesmo paraíso, a um paraíso melhor, pois se não for para ser melhor não estamos aqui a fazer nada.

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