Mas parecia

O visitante pousou os braços na mesa e a São estremeceu ao aperceber-se de que o homem não tinha a mão direita. É o próprio santo, pensou ela.

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A São, que não era velha, mas parecia, levantou-se a praguejar e a tremer, com medo e com fúria, quem seria àquela hora, chovia tanto, tempesteava violentamente. Abriu uma fresta para espreitar, com a corrente posta: era um homem que pedia para se abrigar da inclemência do tempo. A São hesitou, mas acabou por tirar a corrente e abrir a porta, o vulto do homem iluminou-se com um relâmpago, depois ouviu-se o trovão a estremecer a casa, o visitante entrou e tirou a mão esquerda do bolso do impermeável. A escuridão entrava pela janela tentando apagar as velas. Encontrei-o lá fora, disse ele, enquanto punha delicadamente o santo maneta em cima da mesa e as suas coisas, que levava a tiracolo, no chão. Não tirou o capuz. Com este temporal, disse ele, nem uma estátua aguenta passar a noite ao relento. A São não soube o que dizer, agachou-se para acender o lume, perguntou-lhe se ele queria água, pão, vinho, o visitante acenou que sim, o que tivesse ou pudesse, ficaria grato, eternamente grato. A São, que não era velha, mas parecia, sentou-se e serviu dois copos de vinho, com a sujidade da tempestade nas pregas da pele dos dedos, o terço pousado em cima da mesa, a sombra da sua silhueta a dançar à luz das velas e das chamas da lareira. A São serviu o pão — que estava duro —, não faz mal, disse ele, serviu o vinho — que não era bom —, não faz mal, disse ele. O visitante pousou os braços na mesa e a São estremeceu ao aperceber-se de que o homem não tinha a mão direita. É o próprio santo, pensou ela, isto deve ser como quando Abraão foi visitado por Deus, na verdade, três homens que eram Deus, acho que era isso, e agora acontece-me a mim algo parecido, sou visitada pelo santo que pus ao relento depois de lhe partir a mão. Eu nunca fui de aparições, pensou a São, o que se passa? O homem convidou-a para dançar, não há luz, não há música, disse ela, assustada, há sempre, continuou ele, luz e música, era o que mais faltava que isso dependesse da electricidade. Tirou o capuz. Não te lembras de mim, São?

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