Desmistificando patriotismos

Se persistirmos em narrativas excludentes, teremos um agravar do défice democrático e combustível farto para as ditaduras e populismos de todos os tipos.

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Há muitos anos soube pelo meu pai que o seu avô paterno, Teodósio Tiago de Melo, tinha sido gaseado na I Guerra Mundial, e com tal intensidade que faleceu mal regressou. Fiquei duplamente comovido: enquanto pessoa, por saber do sofrimento absurdo de um ente próximo; e enquanto historiador do período contemporâneo, por saber que a minha família fora uma das muitas atingidas na carne pela devastação daquela guerra.

Esta guerra servira a Portugal unicamente para manter as colónias, pois saíra gorado o fim maior de ter forte influência na Sociedade das Nações (a predecessora da ONU). Os seus efeitos económicos e sociais no país foram de tal monta que contribuíram para a queda da República em 1926, permitindo a irrupção de uma ditadura que iria durar quase meio século. Ditadura essa que meteria o país noutra guerra sanguinária, de novo para preservar as colónias.

Numa sessão recente a que assisti, um presente disse que fora combater para “pôr ordem naquilo” (após os atrozes massacres da UPA no Norte de Angola, no início de 1961), ao contrário de outros que haviam fugido, deixando implícito a sua falta de patriotismo por não quererem combater na Guerra Colonial. Por forte imperativo ético, senti-me então obrigado a intervir no debate, para alertar para o maniqueísmo contido neste tipo de discurso. Reflectindo posteriormente nos tempos em que vivemos, de novas guerras devastadoras, prolongadas e outra vez com as justificações patrióticas mais maniqueístas possíveis, pareceu-me que era meu dever contribuir para expor os efeitos perversos que essas narrativas exclusivistas e divisionistas trazem às nossas sociedades. E os 50 anos do fim da Guerra Colonial ainda mais justificam a oportunidade deste texto.

Por isso, num momento em que os falcões aguçam as garras, e os populismos alastram, importa clarificar algumas questões. Desde logo, a política é a arte da negociação, donde a guerra só pode advir depois de esgotadas todas as possibilidades de diálogo. Depois, deve-se retomar as negociações logo que possível, para evitar o alastramento dos efeitos negativos. Os homens que se recusam, em consciência, a combater em guerras de Impérios não são fugitivos, quais criminosos a fugir à PSP. São desertores ou refractários, que não querem ir matar pessoas que consideram como seus iguais, e isso traz fortes danos às suas vidas, logo há um assumir pessoal (e familiar e comunitário, muitas vezes) de pesadas responsabilidades. As mulheres que os apoiam também não são fugitivas, são exiladas e pessoas que exercem o seu dever de consciência. Não se trata, portanto, de um passeio alegre. É bem duro e deixa marcas para sempre.

Como filho de pais exilados e, em particular, de um desertor à Guerra Colonial, sei como isso teve implicações terríveis: um exílio forçado numa terra estranha, com parcos haveres, a necessidade de procurar qualquer trabalho e de reconstruir a vida do zero. Como refugiado da ONU após ter nascido em Bruxelas, fui um dos milhares de filhos desses homens e mulheres que cresceram em ambientes precários, adversos, e a terem de procurar apoio humanitário. Além disso, a assunção dessas opções de consciência foi sempre objecto de retaliação pelos governos ditatoriais de turno. Pior do que isso, a propaganda contínua junto das populações, através do matraquear de nacionalismos agressivos e excludentes em todas as esferas da vida social (da escola ao local de trabalho) e desde a mais tenra idade, criou um ambiente cultural de estigma em relação ao diferente na sociedade, em que quem ousa dissidir é marcado com o ferrete de antipatriota. Esse é o pior anátema que se pode lançar a estes homens e mulheres. Porque significa retirar-lhes os mais elementares direitos de cidadania. E significa, também, estruturar a sociedade com base em princípios excludentes, logo, antidemocráticos.

Pelos anos 1960 surgiram uns doidivanas a gritar «socialismo ou barbárie». Afinal, parece que tinham alguma razão. Noutra formulação, talvez se entenda melhor: «Democracia ou ditadura». É essa a encruzilhada que as nossas sociedades enfrentam presentemente. Se persistirmos em narrativas excludentes, teremos um agravar do défice democrático e combustível farto para as ditaduras e populismos de todos os tipos. Se queremos, ao invés, aprofundar as nossas democracias, impõe-se então deixar a obsessão de pensar na guerra (e na Guerra Colonial em particular) a partir da legitimação de condutas pessoais e começar a reflectir sobre o seu propósito para a comunidade. A opção está nas nossas mãos.

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