Fim do mundo

De doença prolongada, e nem por isso muito prolongada, sofremos todos, chama-se morte: e basta estar vivo para sofrer desse mal.

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Numa tarde amena de Janeiro, a Ana lia um livro sentada num banco de jardim, quando um homem se aproximou dela. Já não te via há tanto tempo, disse o Eduardo, há meses. Sentou-se ao lado dela. A Ana pousou o livro. Ele acendeu um cigarro, ofereceu-lhe um, ela recusou, deixei de fumar, disse. Estamos no final do século, comentou ele, quase a chegar ao fim do mundo. Riu-se. Eu, disse ela, sempre pensei que não me importaria de morrer nesta altura, quando em adolescente pensava nessa hipótese: morrer aos vinte e seis parecia-me uma longevidade suficiente. Riram os dois. Milenarismos à parte, disse o Eduardo, é possível que este lugar infecto e mal frequentado não acabe, mas eu sim. A Ana perguntou-lhe o que ele queria dizer com isso. Estou a morrer, sei disso há bastante tempo, doença prolongada, que é uma nomenclatura estranha para quem não tem muito tempo à sua frente, usa-se a palavra “prolongada” quando a brevidade e a prematuridade são o problema, pois de doença prolongada, e nem por isso muito prolongada, sofremos todos, chama-se morte: e basta estar vivo para sofrer desse mal, enfim, tenho uma doença rara, sem medicação específica, deram-me uns três anos de vida e cá vou andando, meio por milagre, por isso insisti tanto contigo em ter um filho, parecia-me que isso daria sentido à minha existência, criar… um ser que nos excede, completou a Ana, sim, disse ele, deve ser isso, mesmo que seja um sentimento um pouco tolo, como se a biologia ditasse tudo e não houvesse um mundo a ser criado depois dela. Claro, disse a Ana, existem muitas maneiras de encontrar algo que nos exceda, viver para lá das nossas possibilidades. Quando ela se levantou, o Eduardo percebeu que a Ana estava grávida. Há quanto tempo?, perguntou. Há seis meses, disse a Ana. Há seis meses, comentou ele, ainda namorávamos. Sim, disse ela. O Eduardo sorriu de felicidade, vou ser pai, disse, pousando a mão na barriga da Ana, que não o desmentiu, por pena ou compaixão.

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