E agora, será a vez dos trabalhadores do Estado?

Vai-se gerando um consenso alargado quanto a professores, médicos e enfermeiros do SNS, forças de segurança e oficiais de justiça, mas parece esquecer-se as demais carreiras da Administração Pública.

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As sucessivas vagas reformadoras da Administração Pública (AP) ao longo dos últimos 50 anos de democracia raras vezes apresentaram uma preocupação estrutural e estratégica com a gestão das carreiras dos seus trabalhadores e com a tendência, até agora não revertida, de um continuado empobrecimento e perda de poder de compra dos mesmos.

A prová-lo está o facto de, desde o início do século, ou seja, ao longo dos últimos 25 anos –​ tirando o ano de 2020, em que o aumento de 0,3% foi, como se verá mais à frente, meramente formal, não se tendo traduzido numa alteração de rendimentos minimamente significativa – ter havido uma única ocasião em que os salários foram aumentados na generalidade acima da taxa de inflação desse ano (em 2009 os aumentos salariais na AP foram de 2,9% com uma inflação negativa de -0,8%, tendo havido um aumento real dos salários de 3,7%). Mas o problema é muito mais antigo.

Num artigo publicado a 8 de outubro de 2021 no Observador, “Função Pública: desde 1977, aumentos salariais só compensaram inflação em 11 anos”, elaborado com base em dados fornecidos pelo Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE), a jornalista Beatriz Ferreira recordava que, além 2009, foram apenas dez os anos (1980, 1985, 1986, 1987, 1991, 1996, 1997, 1998, 1999 e 2009) em que os aumentos salariais foram superiores à taxa de inflação então verificada, permitindo ganhos no poder de compra em todo o universo dos trabalhadores da AP. É verdade que mais recentemente, em 2020, houve um aumento de 0,3% nos salários de todos os trabalhadores do Estado acima de uma inflação negativa de -0,01%, contudo, em termos reais, este aumento não teve quaisquer repercussões substantivas nos salários.

Se a isto juntarmos, por um lado os cortes salariais instituídos pelo Governo de José Sócrates em 2010 (redução progressiva entre 3,5% e 10% para todas as remunerações ilíquidas mensais acima de 1500 euros) e reforçados pelo executivo de Passos Coelho em 2014, que procedeu a um agravamento dos mesmos, tendo passado a aplicar-se a todos os trabalhadores com salários acima de 675 euros e, por outro, os congelamentos das carreiras que numa primeira fase vigoraram entre 2005 e 2007 e, numa segunda, entre 2011 e 2017, perfazendo um total de dez anos de estagnação na evolução profissional, estatutária e remuneratória dos trabalhadores em funções públicas, será ainda mais fácil entender a situação de degradação continuada em que encontram as suas condições de trabalho.

Em virtude de um modelo de quotas que veio contribuir para tornar mais lento o desenvolvimento das carreiras, iniciado em 2004 e mantido até ao presente, o Sistema Integrado de Avaliação de Desempenho na Administração Pública (SIADAP) tem sido igualmente um elemento-chave para uma degradação das carreiras.

Se excluirmos forças armadas e de segurança, o envelhecimento dos trabalhadores da Administração Pública portuguesa, cuja média de idades era já de 49,1 anos no final de 2022 (dados da DGAEP-Direção-Geral da Administração e do Emprego Público), deve também ser visto como sinal de alerta, sobretudo tendo em conta um contexto em que o recrutamento de novos trabalhadores tem sido comprometido pela falta da atratividade dos salários e das carreiras.

Numa altura em que justamente se vai gerando um consenso político alargado sobre a necessidade de recontagem do tempo de trabalho dos professores, a valorização dos salários das forças de segurança (PSP e GNR), em linha com o suplemento de missão já atribuído aos agentes da Polícia Judiciária, ou o aumento salarial e as melhorias das condições de trabalho dos médicos e enfermeiros do SNS ou dos oficiais de justiça, parece haver um esquecimento relativamente às demais carreiras da Administração Pública.

De acordo com dados provisórios da DGAEP, em 31 de dezembro de 2023 o somatório das três carreiras gerais (técnicos superiores, assistentes técnicos e assistentes operacionais) perfazia um total de 339.127 trabalhadores. Se em alguns escalões de rendimento mais baixo, os assistentes operacionais podem ter beneficiado dos aumentos do salário mínimo ou dos aumentos salariais seletivos realizados na Administração Pública ao longo das últimas legislaturas, as outras duas carreiras gerais continuaram a ver o seu salário real a decrescer ao longo do tempo.

Ao contrário de médicos, professores, polícias ou enfermeiros, os trabalhadores que integram as carreiras gerais, assim como os que fazem parte de tantas outras carreiras no setor público, desenvolvem o seu trabalho em direções-gerais, inspeções-gerais e institutos públicos, uma parte mais invisível da Administração Pública, mas também ela com um papel determinante na execução das políticas públicas nas distintas áreas de governação e, consequentemente, no bom (ou no mau) funcionamento dos serviços públicos.

Se é verdade que ao longo do século XX as teorias comportamentais ajudaram a desmentir e a ultrapassar a convicção taylorista do início do mesmo século de que o ser humano só se esforçava em contexto laboral tendo em vista a recompensa pecuniária (o homo economicus), é igualmente certo que a componente salarial não deixa de ter uma dimensão vital no trabalho, quer pelo facto de ser fundamental para suprir as necessidades materiais objetivas de quem trabalha, quer pela perceção de dignidade que cria ao trabalhador e à sociedade.

Ao longo de 50 anos de democracia, com especial incidência nas últimas décadas, tem sido frequente os atores políticos no poder produzirem considerações subtis, em particular sobre a maior segurança de emprego dos funcionários públicos, ajudando a alimentar a ideia de que se trata de um grupo de profissionais com privilégios importantes na sua condição de assalariados. Para além de agudizar a afronta entre quem trabalha no setor privado e os funcionários do Estado, trata-se, sobretudo, de uma estratégia de sucessivos governos para justificarem a contenção do aumento dos salários e do desenvolvimento mais célere das carreiras que naturalmente implicariam mais despesa pública.

Contudo, esta contenção da massa salarial na Administração Pública como forma estrutural de redução da despesa pública nos orçamentos do Estado não pode ser eterna. É um erro grosseiro que importa travar a tempo. Pelos trabalhadores que necessitam de se sentir dignificados e que dificilmente poderão suportar uma perda de poder de compra que adquiriu um carácter de quase permanência, e pelo país que precisa de um setor público qualificado, motivado e funcional para que as políticas públicas possam ser executadas adequadamente com ganhos para toda a sociedade portuguesa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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