Número doze

Certos reencontros não têm natureza temporal, são avessos à transitoriedade, acontecem na alma e sobem na vertical, perpendiculares à duração da vida e ao fluxo, ilusório ou real, do tempo.

Ouça este artigo
00:00
02:05

Entrando no vão de escadas onde iria fazer o aborto, vidas potenciais, mas que não seriam, floresceram na fantasia da Ana, como por exemplo uma hipotética filha que correria para ela ao sair da escola, correria para ela pela eternidade, porque certos reencontros não têm natureza temporal, são avessos à transitoriedade, acontecem na alma e sobem na vertical, perpendiculares à duração da vida e ao fluxo, ilusório ou real, do tempo, e a par dessas perpendicularidades ternas, também imaginou os desconcertos do destino, os que este impõe com a sua farda de autocrata, imaginou a hipotética filha a ser como ela foi, alheada da atenção materna, mas depressa corrigiu esse futuro triste, porque a fantasia, ao contrário da realidade, permite sempre este artifício, está aberta à edição, à revisão, por isso a Ana concedeu à hipotética filha uma vida feliz, uma vida que seria a sua transcendência (como Rilke chamava aos anjos, seres que nos excedem) e a levasse pela mão a lugares aonde ela jamais conceberia. Imaginou a hipotética filha a crescer, a estudar, talvez artes, como ela, talvez ciências, talvez economia, talvez viesse a ser ministra, ou talvez não se interessasse por nada disso e optasse por uma vida rústica, sossegada, adormecer com o canto das cigarras, ser auto-suficiente, plantar couves e aipo e cebolas, andar com as unhas cheias de terra (número doze), em vez de verniz, ser mordida por carraças, oferecer o coração das meloas às galinhas, dormir a sesta, envelhecer assim, sempre longe da voragem urbana e da pressão dum quotidiano sem misericórdia (número doze!). A Ana voltou a imaginar a corrida eterna do reencontro, a corrida que nunca deixa de acontecer, como a que vai do final das aulas ao abraço materno, em que a sua filha diria mamã, porque é a palavra original, a primeira, e a Ana diria meu amor, que haveria de ser também a sua frase definitiva, pois fica bem como ponto final: seriam as suas derradeiras palavras, para acabar em grande, ou, melhor, para continuar a existir no ser que a excedia. Número doze!! Sou eu, disse a Ana. Um homem conduziu-a por um corredor até chegar a uma porta, a porta que levaria ao apagamento da fantasia.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.
Sugerir correcção
Comentar