Navegar, ficção

Navegaremos, disse ele, não para chegar a ilhas prometidas, mas simplesmente para navegar até elas, pois na verdade as ilhas são um verbo e não um lugar, as ilhas são navegar.

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A Ana sentou-se num café e pediu um café, olhou para o teste outra vez, pensando no que poderia ter acontecido: o Eduardo usava sempre preservativo, não é infalível, claro, mas houve ainda aquela situação na noite da discoteca em que o vizinho do Eduardo disse que me viu a fazer sexo nas escadas. Bebeu o café, pousou a chávena e, agoniada, levantou-se e correu para a casa de banho. Sentou-se na sanita a chorar. Voltou para a mesa, o empregado perguntou se estava tudo bem, ela respondeu que sim e passados minutos um homem sentou-se junto dela, era o tal amigo de infância, que sempre a punha bem-disposta com as histórias que partilhava, e que funcionavam como remédios, como aquelas contadas por uma mãe ao filho febril, sentada na cama dele, porque sabe que os medicamentos sozinhos não bastam, é preciso algo mais, é preciso uma seringa carregada de histórias, a cura gosta de ser acompanhada por palavras. Todos os adultos confusos ou amedrontados ou de algum modo debilitados regressam à fragilidade da infância, e é uma sorte quando existe alguém com a disponibilidade da mãe que conta histórias ao filho doente. Estou grávida, disse a Ana, não sei como, nem sei por quem, nem sei o que fazer, nem sei o que esperar. E ele, como era seu hábito, como se não a ouvisse, simplesmente contava as suas histórias, aumentando a vida, corrigindo a insuficiência da realidade, a sua pequenez: quando tudo parece sucumbir sob o peso da fatalidade crua e da inclemência do dia-a-dia e da falta de delicadeza ou lisura da vida, vai sendo a imaginação a orientar-nos, porque essa é a única maneira de navegar em direcção ao futuro, de inventar um que mereça ser vivido, e esses que fantasiam com regularidade são marinheiros mais capazes. Navegaremos, disse ele, não para chegar a ilhas prometidas, mas simplesmente para navegar até elas, pois na verdade as ilhas são um verbo e não um lugar, as ilhas são navegar.

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