Espaço público e comunidades inteligentes

Sem espaço público de qualidade, sobretudo em espaço urbano, não há comunidades inteligentes, criativas e solidárias, apenas ruído, ódio e ressentimento com origem principal nas redes sociais.

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A última campanha eleitoral para a Assembleia da República, para lá dos resultados e da maior ou menor estabilidade do futuro governo, mostra-nos um outro lado do problema, porventura mais relevante, a saber, a funcionalidade e operacionalidade do espaço público para servir de mediação democrática no novo quadro político que se avizinha e, em especial, de espaço de acolhimento adequado para a formação de territórios e comunidades inteligentes. E sem espaço público de qualidade, sobretudo em espaço urbano, não há comunidades inteligentes, criativas e solidárias, apenas ruído, ódio e ressentimento com origem principal nas redes sociais. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, como sabemos, a articulação do espaço público advém do processo de mediação e suas representações, não só em torno da proteção de interesses privados, mas, sobretudo, da promoção de interesses comuns que, de resto, alargam o campo de possibilidades dos interesses privados. Ora, a democracia tem revelado uma dificuldade crescente em fazer coabitar e conciliar estes dois tipos de interesses.

Em segundo lugar, os media e as redes sociais têm derramado os interesses privados na esfera pública, provocando não só uma profusão de casos de politização do privado e privatização do público como a desvinculação da política enquanto espaço de regulação acreditado.

Em terceiro lugar, a radicalização de sentimentos e emoções entra em rota de colisão com a racionalidade da política. A filtragem operada através dos media e das redes sociais é, com frequência, pura encenação e diversão, que a demagogia e o populismo aproveitam para desviar a atenção sobre as questões relevantes do espaço público.

Em quarto lugar, a cidade carrega o valor da cidadania, mas tem muita dificuldade em promovê-lo nas suas várias manifestações. A periurbanização, a guetização, a gentrificação, os condomínios privados, a insegurança pública versus a segurança privada, são sinais por demais evidentes de que o espaço público está a definhar com a fragmentação da cidade.

Em quinto lugar, a fragmentação da cidade e do espaço público corrói a memória, o espírito e a arte dos lugares e torna mais difícil a formação de comunidades inteligentes, criativas e solidárias no preciso momento em que elas são mais necessárias.

Agora que é criada uma estratégia nacional para os territórios inteligentes (RCM n.º176/2023 de 18 de dezembro), as comunidades inteligentes, criativas e solidárias têm revelado muitas dificuldades em se articular no espaço público, o espaço privilegiado de formação dos bens comuns. O individualismo metodológico predominante fratura e corrompe o interesse comum e as suas mediações, logo, também, as suas correspondentes representações. Em vez disso o que temos é a politização do espaço privado e a judicialização crescente da política. No final, sem mediações e representações dignas desse nome, o que temos é a ligação direta ao povo, o populismo, a demagogia, a lei do menor esforço, onde quase tudo é encenado e manipulado. O espetáculo e a diversão substituem o espaço público que anteriormente, por exemplo, o jornalismo independente preenchia em boa medida. A democracia está em perigo e o risco de colisão é iminente.

Aqui chegados, as disfuncionalidades e a inoperacionalidade reveladas no espaço público geram um ambiente hostil à formação de comunidades inteligentes, criativas e solidárias. A diversidade e a diferenciação não comunicam entre si e o interesse comum não emerge, pelo contrário, é submerso pela fragmentação e privatização do espaço público. No final, a interoperabilidade dos vários interesses em presença, privados, públicos, sociais e comunitários, não funciona e gera um enorme desperdício de recursos, uma vez que os custos de organização de cada interesse corporativo em presença são excessivos para os recursos disponíveis. A constatação parece evidente. Entre o centralismo administrativo, que é pouco discriminatório para atender a todas as situações, e o localismo municipal, que é difuso e dispersivo, não parece haver muitas condições para a formação de comunidades inteligentes, criativas e solidárias, uma vez que os custos de contexto, de oportunidade, de formalidade, de cobertura de danos e riscos são cada vez mais elevados.

Precisamos urgentemente de reciclar e refrescar o nosso pensamento político para evitar o colapso da sociedade e o risco de disrupção entre o ator e o sistema. Precisamos de impedir que haja uma espécie de miniaturização da política e a ascensão de uma sociedade de hpervigilância. Precisamos de prevenir a implosão das dimensões espaço-tempo, a crise da alteridade, a crise da urgência, a prevalência da lei da instantaneidade. O real esconde-se, cada vez mais, por detrás da realidade das aparências e dos epifenómenos e, agora, no espaço público criativo e solidário teremos, também, a presença da inteligência artificial generativa. Cuidados redobrados, pois, com os jogos de dissimulação e ocultação.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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