Só exige um passo

Atirou-lhe um livro contra a cara, depois outro, primeiro com um volume de capa dura que reunia textos epicuristas, mas acertou-lhe melhor com o segundo, uma obra incontornável de poesia persa.

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Confrontado, negou tudo, não é verdade, Ana, disse-lhe o Eduardo, não saí com mulher nenhuma da discoteca, quem te disse isso mentiu, saí — e saí sozinho — porque precisava de apanhar ar fresco, caminhei pelo bairro [a Ana metia as suas roupas numa mala] dei umas voltas, sentei-me num murete a fumar um cigarro, depois voltei a entrar na discoteca para que fôssemos para casa [onde é que eu pus o casaco, perguntou a Ana], mas já não estavas ou não te encontrei, é possível que não te tivesse visto, estava tanta gente, abarrotava [a Ana entrou na casa de banho], e se, a seguir, demorei demasiado a chegar a casa, foi porque decidi caminhar, estava a necessitar disso, não eras só tu que estavas nervosa e que tinhas bebido, eu também [a Ana punha os objectos de higiene na mala], porque não te sentas um pouco para que possamos conversar, escuta, o que ouviste não é verdade [a Ana foi até à sala, o Eduardo foi atrás, ela começou a tirar alguns livros das prateleiras, os seus, colocando-os em cima de uma poltrona]. Ele agarrou-a pelo braço para que se sentasse, senta-te, a Ana puxou o braço, libertando-se, e atirou-lhe um livro contra a cara, depois outro, primeiro com um volume de capa dura que reunia textos epicuristas, mas acertou-lhe melhor com o segundo, uma obra incontornável de poesia persa, que neste caso foi incontornável fisicamente, gritando que não acreditava nele, não acredito, não acredito em ti, mas se queres saber, neste ponto é tudo irrelevante [o Eduardo sentou-se no sofá e acendeu um cigarro], nada disto faz sentido, continuou ela, já devíamos ter acabado esta relação há muito tempo. Onde puseste o meu livro de poemas do Stamboliski? [o Eduardo apontou para a casa de banho]. A Ana encontrou-o em cima do autoclismo, levou-o para junto dos outros, enfiou-os numa mochila, pegou nas suas coisas e saiu. Voltou a entrar passados minutos para atirar as suas cópias das chaves para o tapete da sala — O Eduardo ainda estava sentado no sofá —, fechando de seguida a porta atrás de si. Ao descer as escadas, encontrou o vizinho do rés-do-chão. Que pouca-vergonha, disse ele, como assim?, perguntou ela, não se faça de sonsa, disse ele, sabe muito bem do que se trata.

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