Os videirinhos da política, 50 anos depois do 25 de Abril

Não tapemos o sol com uma peneira. Existe inequivocamente uma crise de valores na sociedade.

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Um dos episódios mais curiosos nos pós-25 de Abril de 1974 foi o súbito brotar de umas personalidades que de um momento para o outro passaram a exibir A República e o Diário de Lisboa debaixo do braço, em contraste com A Bola e o Record de semanas antes! Catalisadores de tarefas, despachados em ordens, acalorados na oratória, furibundos perante um confronto de ideias… A alguns destes acrobatas oportunistas eu nunca ouvira uma opinião fora de futebol, mulheres, totobola, comes e bebes! Nem tão pouco eram reconhecidos como membros do MDP/CDE ou sequer como assistentes de comícios políticos, onde representantes da oposição até estavam proibidos de falar sobre a guerra colonial, perante o mandatário do governador civil.

A psicologia das multidões explica bem tais fenómenos. O fanatismo acrítico deu bandeiras desfraldadas a estas hordas, mas toda a inteligência ficaria pela corneta, embora isso só mais tarde se reconheceria. Obviamente que a sensação de poder, ilusória ou não, acompanhada à pressa de adereços publicitários ou identitários, estimulava a persistência de protagonismos sociais. Como gentes de palco e de palmas, alguns saídos de um atávico cinzentismo, cedo se aperceberam que o importante era conhecer os sinais do vento. O cavalo do poder é para ser montado. Dizem. É preciso estar no lugar certo e não importa a cor do cavalo. Isso também explica porque há trânsfugas entre partidos. A ideologia, desgarrada e frouxa, foi logo sugada pelos interesses comezinhos do imediato ou lidos como grandiosos pela intuição do que estaria para vir. Caminho aberto para golpistas que nunca conheceriam a decência, a honradez, o servir a Pátria.

Jamais o questionar o chefe e saber gargalhar com ele é uma receita de sucesso. Dar tempo ao tempo e de preferência ostentar um carro vistoso, usar boas gravatas e fatos à medida, com lencinho, também ajuda. E acima de tudo mostrar-se com ar de sabido sem opinar, apenas tímida presunção, jamais petulância. Isto, mais do que uma arte, é um dom. Uma rampa de lançamento. O poder não gosta de pessoas que pensem demais. Portanto, não surpreenderá que em muitos lugares de decisão política ou administrativa tenham sido colocadas personagens anódinas que nada devem ao mérito, mas sim a outros contornos. De fidelidade canina ou a forças não dizíveis.

Ignorar ou decapitar os quadros mais habilitados empobrece o Estado e perpetua um indecoroso jogo de cadeiras. Cenários ridículos e hilariantes, mas potencialmente perversos para a sociedade, pela incompetência dos agentes e por alegados negócios paralelos e obscuros. De facto, a probidade nem sempre vem. A historieta de que ser-se ex-ministro é melhor do que ser-se ministro parece ter fundamento. Os exemplos são muitos e sempre estiveram à vista, sem pinga de pudor, com o poder político a assobiar para o ar.

Quando a geração que lutou pelo 25 de Abril de 1974 – e já passaram 50 anos – observa que o poder económico há muito que capturou o poder político, e para isso basta constatar o que se tem passado com os diversos setores estratégicos da economia nacional, irracionalmente privatizados e com o mundo em guerra, a banca, ingrata pelos apoios recebidos na crise financeira 2008-2014 e a exuberância de lucros extraordinários em 2023, ou os reguladores, adormecidos e com falta de coragem, não é difícil perceber que esse polvo tentacular só foi possível crescer porque houve agentes cúmplices, distraídos ou algo mais. Por outro lado, rios de dinheiro vieram da União Europeia e nem é preciso ser arguto para entender que muitos desses proventos se transformaram em benesses para bolsos calafetados de fura-vidas, xico-espertos ou bajuladores, próximos de áreas do poder económico ou político. Autênticos psicopatas com nova roupagem.

Esta é a perceção geral da opinião pública. Sejamos claros. Não vale a pena poupar nas palavras: muitos figurões roubaram descaradamente o país com a plena convicção de impunidade. E o que lhes aconteceu? Nada ou quase nada! Alguns até seriam condecorados! O desaforo de uns casou com a estultícia de outros. A vigarice de uns casou com o deixa-andar de outros. A jactância de uns casou com o encobrimento de outros.

Não tapemos o sol com uma peneira. Existe inequivocamente uma crise de valores na sociedade. É um lugar-comum, mas o pior cego é o que não quer ver. Há muito que os alarmes já deveriam ter soado. Trata-se de um problema de todos nós. Apenas para simplificar, ouçamos atentamente as mágoas e as frustrações da Geração Z, a juventude dos últimos trinta anos, também ditos nativos digitais, todos aqueles que pensam que a liberdade e a democracia são dádivas que irrompem sem sobressaltos e por inerência determinística. Talvez possamos admitir que lhes falta literacia política e social. Ninguém lhes falou de fascismo ou de comunismo. Do Estado social e do compromisso intergeracional. Da empatia, da solidariedade e da compaixão.

A ser verdade, a culpa é nossa. Mas não é com retóricas vazias e truques semânticos de manipulação que se pagam contas. Ou com promessas daquilo que não foi concretizado durante décadas. Salários baixos, preços à Europa rica! Vamos continuar a exportar médicos, engenheiros, arquitetos, informáticos, e importar operários indiferenciados, muitos nem aculturados, para a hotelaria e para a agricultura? Será que alguém vislumbra aqui uma inteligente estratégia de futuro? Afinal, onde está o pensamento crítico para lá do horizonte visível? Onde estão os livres pensadores sem as cangas dos partidos?

Regozijamo-nos por ter os cofres excessivamente cheios? Salazar tinha das maiores reservas de ouro do mundo, mas o povo andava descalço nas aldeias, emigrava a salto e era analfabeto! Perante tais desconfortos e incongruências, alguns de nós até corariam de vergonha pela ineficiência de responder às necessidades do povo. O país não é só a Baía de Cascais, com palacetes, marinas e casino! Ainda espantados com os recentes resultados eleitorais? Quando o poder deixa de ouvir o clamor da rua, desvia-se da realidade. Fica desconectado. Poderá parecer um exagero, mas é uma doença, uma desrealização! O óbvio não precisa de oráculo. Neste ínterim, outros videirinhos da política, especialistas das hipérboles de atrevimento desmedido, das promessas do reino do leite e do mel e do “lambe-botismo”, ressurgem por aí…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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