Uma espécie triste

Uma pessoa sem medo dificilmente sobreviveria, mas sem alegria, sim, o que, levado ao extremo, poderia resultar na sobrevivência de uma espécie triste. Talvez seja a nossa.

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Os momentos de alegria são agregadores e é inegável a sua função social, além do valor mais óbvio da recompensa individual, porém, a maior parte do tempo de vida duma pessoa não é passada em festejos, o Carnaval são três dias, as férias são poucas: é a rotina que domina o quotidiano e, no meio dessa rotina, o medo. Esse medo ancestral tem sido eficaz no que diz respeito à sobrevivência (ou não estaríamos aqui), mantendo-nos alerta, pois um humano a celebrar aos pulos é uma presa fácil, e, talvez por isso, a cautela e o hábito — o gesto que sabemos funcionar — se tenham instalado e sido preferidos a outros, mais lúdicos e despreocupados. Uma mente temerosa está vigilante: a presença do leão ou de qualquer outro predador não passará despercebida. Pelo contrário, aventurar-se no espaço aberto da liberdade — e da felicidade — pode fazer perigar a vida: o grito de júbilo chama o leão. Uma pessoa sem medo dificilmente sobreviveria, mas sem alegria, sim, o que, levado ao extremo, poderia resultar na sobrevivência de uma espécie triste. Talvez seja a nossa. A espaços, tenta-se o equilíbrio, pontuando a rotina e o medo com momentos de gozo, uns mais catárticos outros mais repousantes, um copo com os amigos, uma história à lareira, um festival de música, leitura, massagens, aniversários e outras efemérides, mas a maior parte de cada dia e dos dias trabalha-se, sempre receando o futuro, desconfiando do porvir e desolado com o presente. A taxonomia da fera que nos ameaça não é apenas limitada a felinos da savana. Há o mau patrão, o especulador, o opressor, há o invejoso que abomina a alegria alheia, enfim, variadas formas de predar. Uma das feras mais temidas pela população é o fim do mês. Somos seres com dificuldade em olhar a felicidade nos olhos porque vemos através de uma lente amarga, triste e receosa, que nos faz achar estarmos a viver o pior dos tempos (a ideia de vale de lágrimas, ranger de dentes e aflição é muito antiga, o que nos devia dizer algo sobre o atavismo deste viés) mesmo que seja o menos mau.

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