Catarina Martins: “Quem acreditou na bondade democrática da NATO, ouça Donald Trump”

A ex-líder do Bloco de Esquerda quer “alianças vastas” para combater a extrema-direita, mas defende que “é preciso disputar mudanças” através de “propostas concretas”.

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Catarina Martins foi coordenadora nacional do BE e é membro da comissão política do partido Daniel Rocha
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A cabeça de lista do Bloco de Esquerda (BE) às eleições europeias, Catarina Martins, defende que é preciso "um projecto novo" para a União Europeia (UE) de forma a "popularizar a democracia" e combater a extrema-direita. Isto, criando "alianças vastas", uma experiência que a ex-coordenadora do BE já teve no plano nacional, inclusive durante a "geringonça", e espera agora levar para Bruxelas.

Em entrevista ao PÚBLICO, avança algumas medidas que devem fazer parte desse projecto, como "debater as formas de cooperação" da Europa (por oposição à NATO), garantir uma maior redistribuição da riqueza para fazer uma transição climática justa, criar uma "distribuição solidária" no acolhimento dos refugiados ou discutir o controlo democrático do Banco Central Europeu (BCE). Mas também alterar as regras de governação económica, nomeadamente, na forma como o défice é contabilizado.

Deixou a liderança do BE e a Assembleia da República há menos de um ano. Agora, vai ser candidata às europeias. Porque é que decidiu abraçar já um desafio político?
Colocou-se a questão de o BE precisar de uma candidatura forte às eleições europeias e houve a percepção de que eu seria a pessoa que o poderia fazer. Continuo a lutar por uma esquerda que dá resposta às pessoas. Estas eleições vão ser particularmente importantes. A nível europeu estamos num processo complicado, com o crescimento da extrema-direita em que é preciso um projecto europeu novo que seja mais do que dizer que vamos manter tudo como está e que não gostamos da extrema-direita. Essa reafirmação de um projecto vazio, que não é um programa para a Europa, para nós, os povos, só faz a extrema-direita crescer.

A grande prioridade para estas eleições é o combate à extrema-direita?
É um projecto que possa popularizar a democracia. A extrema-direita é um resultado claro das desigualdades estruturais, do racismo estrutural, do patriarcado que permanecem na sociedade e que devem ser combatidos. Mas é preciso um projecto em que as pessoas possam acreditar. Não podemos dizer às gerações mais jovens da Europa que fica tudo como está ou vem aí o papão da extrema-direita porque como está não está a servir.

Quais são os eixos desse projecto? A crise climática?
Seguramente uma transição justa, porque é preciso ser claro: não vamos ter um projecto de resposta às alterações climáticas feito contra a maioria do povo. Ou há uma maioria popular que compreende a transição ou não será feita. É preciso ser claro sobre coisas como não haver impostos verdes, há impostos justos e injustos. A transição tem custos e têm de ser pagos por alguém. Não podemos dizer às pessoas que estão em modelos de produção tradicionais que têm de ser reconvertidos que elas têm culpa. Vivemos num momento em que há uma enorme concentração de riqueza. Vai ser preciso ir à luta para essa distribuição de rendimento que nos permite uma transição justa que pode criar empregos para o clima, mudar o território, a mobilidade, a habitação.

Pretende dar continuidade ao legado de Marisa Matias?
Marisa Matias foi seguramente uma das mais brilhantes eurodeputadas que Portugal já teve. As suas lutas nas questões ambientais e climáticas, dos direitos humanos, das migrações, da guerra e da paz são absolutamente importantes e têm de continuar. Depois, o BE fez uma ponderação sobre se eu sou capaz de trazer alguma coisa a esse percurso. Pelas responsabilidades que assumi, atravessei o período da troika em que foi preciso criar aliados. Ou quando conseguimos o acordo com o PS em 2015. E mesmo a reconfiguração do quadro político na Europa para termos uma esquerda que compreenda a necessidade de um projecto de transição ecológica. São processos em que estive muito presente, com a Marisa, e é essa experiência muito concreta de alianças e ideias que espero trazer.

As sondagens mostram que haverá uma maioria de direita e um crescimento da extrema-direita que vai colocar em causa matérias como o Pacto Ecológico Europeu, a questão das migrações ou o apoio à Ucrânia. Como é que o centro e a esquerda podem responder?
É preciso não dar por perdido. A esquerda não tem tempo para ficar com pena de si própria, deve agir e ir à disputa. Depois, é preciso clareza do projecto. O pacto ecológico, tendo boas intenções, tem poucas políticas para disputar uma maioria social para a transição. O pacto das migrações é absolutamente inaceitável. Não creio que a esquerda deva fazer um acordo em que acha estas coisas normais. É preciso denunciá-las porque é preciso disputar mudanças. Sem um projecto de esquerda que seja capaz de lançar alianças vastas, mas que seja absolutamente determinado nas matérias fundamentais, a climática, os direitos humanos, o contrato social da Europa, não estará a fazer o seu trabalho.

As pontes que querem fazer com PS, PCP, Livre e PAN devem estender-se ao plano europeu?
Discutir alianças sem programa político é vazio, não diz nada à vida das pessoas. Por exemplo, disputar a criação de canais seguros de entrada da Europa e mudar o regulamento de Dublin para que os países que têm entrada directa não sejam os responsáveis pelos refugiados e migrantes que entram, mas haja uma distribuição solidária na Europa, com políticas de integração, isso é uma proposta. Com essa proposta, vamos trabalhar para alianças com quem não quiser a política da extrema-direita. Temos de ir pelas propostas concretas.

Perante o crescimento dos partidos de extrema-direita, muitos eurocépticos, e a escalada da guerra na Ucrânia, faz sentido o BE manter um discurso eurocrítico e anti-NATO?
Não temos um discurso crítico sobre as condições da democracia no nosso país? Temos. Defendemos a democracia no nosso país com unhas e dentes, mas precisamente por isso achamos que há coisas que é preciso fazer diferente. Esta ideia euro ingénua de que Portugal deve ser completamente submisso, não ter projecto e que as forças políticas não devem debater é errada. Do mesmo modo, a questão da NATO não se muda de um dia para o outro, mas não deve haver tabus. Quem acreditou numa espécie de bondade democrática da NATO, ouça Donald Trump, não tem de ouvir o BE.

A Europa precisa, ou não, de começar a debater formas de cooperação que dêem autonomia e segurança verdadeira? Tem algum sentido escolher entre o projecto czarista de Putin ou o projecto imperialista de Trump, quando, ainda por cima, podem vir a ser o mesmo e a Europa não tem nenhuma capacidade que a proteja das questões da guerra e da energia?

O BE não deve clarificar a sua posição sobre a UE, sob pena de ficar prejudicado entre um PCP, que é mais claramente contra, e o Livre, que é mais claramente a favor?
O BE tem uma posição clara, é absolutamente defensor de que não há lugar para países sozinhos e que a cooperação europeia é fundamental. Também acha que a esquerda não deve aceitar o que há e que está a produzir a extrema-direita e que Portugal não é um parceiro menor na Europa. Deve ter uma estratégia, alianças e pensar quais são os caminhos comuns. Isso chama-se responsabilidade.

Em Setembro, José Gusmão disse ao PÚBLICO que um dos objectivos destas eleições seria que a UE tivesse mínimos sociais, mesmo que tivesse de alterar as regras de governação económica. Que mínimos sociais são esses?
Vamos apresentar o programa em breve. O que posso garantir é que o BE não vai aceitar as actuais regras de governação económica como se fossem uma lei da gravidade. A política é fruto da decisão política e as actuais regras de governação económica estão objectivamente a destruir os serviços públicos na Europa.

Mas a reforma do Pacto de Estabilidade e Crescimento é um sinal positivo ou continuam a defender a revogação do pacto?
As alterações, parecendo que dão mais margem aos países, dão mais discricionariedade à Comissão Europeia na imposição de regras aos países. São sinais que não são bons. Continuamos a achar que é mesmo importante um novo contrato social na Europa.

O facto de o PS ter conseguido cumprir as metas orçamentais europeias não vos concilia com essas regras?
Gasta-se mais em tarefeiros e horas extraordinárias no SNS do que em salários de médicos para não ter despesa estrutural. Desse ponto de vista, não nos concilia. Nós precisamos que os Estados tenham capacidade de ter despesa estrutural e capacidade de investimento para não deixar degradar os serviços públicos e as condições da economia.

E que [essa capacidade] não esteja tão dependente de fundos comunitários?
Claro. Mas o problema é o que se mede de défice. Os Estados devem ter uma despesa estrutural suficientemente sólida para permitir que os serviços públicos fundamentais funcionem. Considerar-se que a despesa estrutural é um mal em si mesmo e que se pode ter a despesa dita pontual, que se repete todos os anos e faz com que haja uma enorme ineficiência na forma como se gasta dinheiro público, é um problema. É uma opção do governo português em linha com as regras de governação económica e, por isso, está errada.

Revogar o Tratado Orçamental, sair da União Monetária, se necessário, ou reestruturar a dívida também vão continuar no programa?
Os programas têm prioridades, dependendo dos momentos. Foi muito importante o BE ter feito trabalho sobre a dívida. A esquerda não vai abdicar desse combate ou dos combates contra o que afronta a capacidade dos povos. Mas estou muito mais preocupada com os mecanismos de controlo democrático do BCE. Temos uma crise inflacionista. O BCE sabe perfeitamente que é provocada pela oferta e não pela procura, decide subir os juros, criar uma crise social terrível, e achamos que não precisamos de discutir o controlo democrático? O BCE não responde a nenhuma instância democrática.

A que instância pode responder?
O desenho institucional da UE é sempre complexo, mas o BCE é aquele que responde menos, nem ao Parlamento Europeu nem ao Conselho Europeu. Esse é um debate que deve ser aberto.

O BE traçou como meta ser a terceira força política no Parlamento Europeu. Depois destas eleições legislativas, mantêm-na?
Respeito muitas as metas que forem estabelecidas pelo partido e farei o meu melhor.

O cenário é mais difícil do que em 2019?
Foi diferente. Não estávamos a ver o crescimento da extrema-direita.

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