Condenados à liberdade

Deixaram-se cair na alcatifa vermelha da sala, provando que a vida não é apenas uma luta pela verticalidade: a horizontalidade também tem os seus méritos e os seus atractivos.

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Depois de umas cervejas a mais, a Ana ia gritando pelas ruas a frase existencialista “estamos condenados à liberdade”, enquanto o tímido Flávio a amparava para que ela não caísse, demonstrando não apenas a necessidade de lutar pela verticalidade como também a importância do amparo social. Mas é também possível que ele não a estivesse a amparar, estivesse, isso sim, a amparar-se. Foram para casa dele, escrevendo o percurso aos esses, fazendo uso daquelas circunvalações que o álcool produz: o álcool não gosta de rectas. Subiram as escadas do prédio com alguma dificuldade, a Ana começou a gritar “estamos condenados à liberdade”, mas o Flávio conseguiu interromper o berro tapando-lhe a boca, olha os vizinhos, disse ele, desatando os dois a rir. As gargalhadas foram tão exuberantes quanto teria sido o grito de liberdade que não chegou à plenitude, não agradando nada aos tais vizinhos, especialmente à dona Matilde, condómino do terceiro esquerdo que apareceu à porta em camisa de noite para insultar o casal, enquanto os dois cães do segundo direito, que ficava por baixo do apartamento do Flávio, ladravam. Ele pediu desculpa, peço perdão, dona Matilde, mas ainda a rir, o que soou mais a topete do que a expiação, sensação agravada pela Ana, ao decidir voltar a gritar “estamos condenados à liberdade”, desta vez de forma plena e consumada, embora a ebriedade não tenha ajudado na clareza da articulação da frase. O ciclo repetiu-se, voltaram os dois a ter um ataque de riso, retomando as desculpas e as gargalhadas, culminando com o clamar da frase “estamos condenados à liberdade”, levando a dona Matilde a arremessar os seus chinelos e mais uns insultos, ameaçando-os com infernos medievais, enquanto demonstrava um surpreendente e desembaraçado uso do calão. Mal entraram em casa, o tímido Flávio e a Ana, deixaram-se cair na alcatifa vermelha da sala, provando que a vida não é apenas uma luta pela verticalidade: a horizontalidade também tem os seus méritos e os seus atractivos.

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