Amarrar os médicos ao SNS

Como exigir que só os médicos compensem o Estado “pelo investimento público” na sua formação” e deixar outros 20 mil licenciados, em quem o Estado também investiu, partirem para outros países?

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A fuga de licenciados preocupa o país. Estima-se que, desde 2016, todos os anos cerca de 20 mil licenciados partam rumo à emigração. A dimensão deste êxodo é dramática porque significa que quase um em cada quatro jovens licenciados abandona o país. Porque este não lhe oferece perspetivas de um futuro que se enquadre nas suas qualificações e expectativas.

Os baixos salários e o custo da habitação são apontados como as principais causas. Para mitigar essa sangria há partidos que propõe no seu programa eleitoral incentivos fiscais e no crédito à habitação para os jovens. Todas as medidas são poucas porque deveria ser um imperativo nacional investir na retenção dos seus quadros. Porque só assim poderemos rentabilizar a qualificação dos nossos jovens. Em quem tanto investimos e confiamos para desenvolver o nosso país e a nossa economia.

Mas, por outro lado, o Partido Socialista propõe, e cito o seu programa eleitoral, “avaliar a possibilidade de introdução de um tempo mínimo de dedicação ao SNS pelos profissionais de saúde, nomeadamente médicos, na sequência do período de especialização” e “avaliar a possibilidade de introdução de um quadro de compensações, pelo investimento público do país na sua formação, por parte de médicos que pretendam emigrar ou ingressar no setor privado.”

Perante isto, perplexo, deparo-me com duas interrogações. Será que esta proposta não viola o artigo 47.º da Constituição? Que passo a citar: “Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública – 1. Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse coletivo ou inerentes à sua própria capacidade...”

Será legítimo alegar neste caso o interesse coletivo? Mas como exigir então que os médicos compensem o Estado “pelo investimento público do país na sua formação” e deixar que 20 mil licenciados em quem o Estado também investiu partam livremente todos os anos para outros países? Não violará esta proposta o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13.º da Constituição? Será que nem “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”?

No PÚBLICO de 16 de Fevereiro, um artigo de Daniela Carmo recorda que nos Açores já existe um projeto com “algumas semelhanças a ocorrer”. Trata-se de um programa opcional em que os alunos de Medicina que entram na faculdade cumprem o ciclo básico de Medicina na Faculdade de Ciências e Tecnologia, completando o curso na Faculdade de Medicina de Coimbra. O curso tinha me 2023 50 vagas, sendo para alunos açorianos está reservado um contingente de 50% das vagas.

Ora são mais as diferenças do que as semelhanças com o que agora parece estar em cima da mesa. Pelo seu carácter opcional uma vez que quem escolhe o curso já conhece as regras e o compromisso a que está obrigado. Da mesma forma existem médicos que optam por fazer a formação na Academia Militar, ao abrigado de um protocolo com a Universidade Nova de Lisboa, ficando igualmente obrigados a ficar ligados à instituição militar uma vez completado o curso.

Fiquei mais tranquilo ao ler outra notícia do PÚBLICO assinada pela jornalista Alexandra Campos. Que refere que fonte do PS afirmou à Lusa que "'avaliar a possibilidade' significa, tal como referido, que qualquer uma dessas medidas nunca será tomada sem avaliação, negociação e aceitação por parte das estruturas representativas dos médicos". O teor da notícia foi depois confirmada pelas declarações de Pedro Nuno Santos em debate televisivo.

Tenho de dar como adquirido que nem Ordem nem sindicatos dos médicos irão trair os médicos internos que durante os seis anos de formação dão o corpo às balas. Dessa forma assegurando muita da atividade assistencial do SNS, trabalhando muito para além do seu horário e das horas extraordinárias a que estão obrigados. Ou seja, esta proposta nunca terá a aceitação das estruturas representativas dos médicos. Como tal não será para implementar. Apenas foi colocada no programa eleitoral do PS para eleitor ver. Porque é uma medida popular. E populista.

Mas é também uma medida cega. Que revela que quem a propõe não percebe o que se passa. O SNS não é hoje apelativo para os jovens médicos. Todos os anos ficam, cada vez mais, vagas de formação no internato médico por preencher. Este ano 406 das 2242 vagas não foram escolhidas. Nalgumas especialidades isso é particularmente dramático. Na Medicina Interna, uma área que é um dos pilares de qualquer hospital, 142 das 248 vagas ficaram por ocupar. Nenhum médico optou por uma das 30 vagas de Medicina Interna no Hospital de Santa Maria.

O SNS não é viável sem profissionais. Para o salvar é urgente conseguir motivar todos os que o trocam por outros destinos. A remuneração é importante. Mas não é, de todo, o principal fator. Porque os médicos sempre se consideraram mal pagos no SNS. Mas sentiam que valia a pena o esforço. Porque a formação lhes daria a diferenciação que os iria recompensar no futuro. O que mudou então?

Esta geração vive aquilo que Tolentino de Mendonça classificou como crise de esperança. O internato médico exige muitos sacrifícios. Muito trabalho, tantas vezes em condições precárias, com falta de recursos humanos e equipamentos obsoletos. E os jovens médicos não vêm no seu horizonte como e quando essa realidade se vai alterar. E sem esperança partem. E ninguém irá conseguir obrigá-los a ficar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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