“Prefiro sacrificar um pouco da minha liberdade”: o discurso securitário da direita populista

O discurso securitário da direita populista implica uma hierarquia de valores que, por vezes, se sobrepõem a pressupostos fundamentais das democracias liberais.

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“Prefiro sacrificar um pouco da minha liberdade”: o discurso securitário da direita populista Daniel Rocha
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"Prefiro sacrificar um pouco da minha liberdade e ter mais segurança, sim”, disse André Ventura numa conversa com Miguel Milhão, que já conta com mais de 500 mil visualizações, quando confrontado com a escolha entre liberdade e segurança. Embora reconheça que ambas são importantes, a dimensão securitária é central no discurso de Ventura.

À primeira vista – e não viesse de quem vem – tal afirmação não pareceria tão controversa quanto isso. Afinal, todos nós no nosso dia-a-dia sacrificamos alguma liberdade e privacidade em nome da segurança. Porém, o discurso securitário da direita populista implica uma hierarquia de valores que, por vezes, se sobrepõem a pressupostos fundamentais das democracias liberais.

Podemos ver como este discurso se traduz na prática em outros países. Em Itália, o governo Meloni enquadra os mais variados desafios num contexto de ‘crise’ permanente, justificando assim mais segurança e vigilância. Depois de o governo aprovar o novo decreto sicurezza (Novembro 2023), Giorgia Meloni declarou: “Sem segurança não há liberdade, não há crescimento económico, não há proteção social ... [o trabalho das forças de segurança] está na base da essência do conceito de comunidade.” E, isoladamente, esta declaração – tal como a proferida por Ventura – poderia nem ser problemática. Contudo, algumas questões são levantadas por medidas que, entre outras, dão aos agentes de segurança pública a possibilidade de porte de arma pessoal fora do serviço e sem licença; instituem novos crimes (como revoltas em prisões e em centros de acolhimento para migrantes e o bloqueio de estradas por grupos, uma estratégia de protesto não-violento utilizada por ambientalistas); e endurecem algumas penas.

A oposição acusa o governo Meloni de fazer de Itália uma espécie de faroeste, aumentando “penas e armas só para encobrir a incapacidade de responder às emergências económicas”. As medidas, que destinam 1,5 mil milhões de euros às forças de segurança, tendem a ampliar o conceito de ‘bandido’ e a sacralizar uma noção autoritária de ‘polícia’ para justificar e escamotear as incapacidades do governo para resolver problemas de fundo.

A direita populista europeia, da qual o Chega faz parte, costuma embrulhar as suas intenções em asserções aparentemente universais que não se traduzem nas nuances de que é feita a realidade – a lente através da qual olham para a sociedade só lhes permite ver dicotomias, como a de polícia/bandido. Nesta dicotomia cabe tudo o que estes partidos quiserem, desde as forças de segurança até questões de imigração, e o que o seu eleitorado interpretar, sem necessidade de elaboração. A força do Chega está precisamente na elasticidade de chavões – como “portugueses de bem” – que permite a mobilização do descontentamento pessoal e do ressentimento político, muitas vezes baseada na nostalgia ilusória de um Portugal ‘do antigamente’ e na definição de ‘inimigos’ e ‘ameaças’ supostamente iminentes. O guião alarmista de Ventura, com declarações como “a imigração é a bomba atómica sobre a Europa,” proferida na conversa supramencionada, é transversal à direita populista europeia.

“Demagogia feita à maneira é como queijo numa ratoeira”, já dizia a canção. Mas, para responder ao crescimento da direita populista, talvez os seus adversários tenham enfim de se confrontar com orfandades políticas, desfasamentos (ou mesmo vazios) ideológicos e o difícil equilíbrio entre imperativos morais e as preocupações de maiorias mais ou menos silenciosas.

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